janeiro 18, 2007

Olhar Agora

Venezia, Dez. 2006 (photo by RC)

Joseph Brodsky regressou repetidamente a Veneza durante 17 anos, sempre no Inverno. Evitou o Verão: não se dava com o calor nem com as arritmias de gente; além disso era - como refere - do Norte (do Báltico, da Rússia), o que de certa forma entronca com a estação abstracta, porque no Inverno é tudo mais cru. Mas também era uma questão de aparência física, de indumentária, mais consonante com a escolha da beleza e as cores pardas e austeras da laguna. «Nesta cidade os corpos, mesmo os mais bem dotados, devem a meu ver andar cobertos de tecido, quanto mais não seja porque se movem»; é que «a beleza circundante é tal que sentimos logo um incoerente desejo animal de a imitar, de estar à sua altura. Isto nada tem a ver com a vaidade, nem como o natural excesso de espelhos que aqui encontramos, sendo o príncipal a própria água. Acontece simplesmente que a cidade oferece aos bípedes uma noção de superioridade visual inexistente nas suas tocas naturais, nos seus poisos costumeiros. É por isso que aqui as peles voam, como voam a camurça, a seda, o linho, a lã e qualquer outro tipo de tecidos». É ainda guiados pelo Watermark, de 1992 (Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993), que seguimos através das fachadas, do mármore e do tijolo recônditos, das janelas góticas ou mouriscas, dos nichos tornados mais fundos, dos canali interiores, quase presos numa noite assustadora, dos querubins e dos anjos nas paredes, das estátuas em Campo dei Mori, dos reflexos na água espessa, castanha, que inunda as escadarias baixas dos palazzi, numa «imagem a preto e branco, como convém ao que brota da literatura, ou do Inverno; aristocrática, escura, fria, mal iluminada, com acordes de Vivaldi e Cherubini por pano de fundo, e por nuvens de corpos femininos drapejados à maneira de Bellini/Tiepolo/Ticiano». De manhã, a luz assenta numa espécie de vibração conjunta de todos os sinos que tocam para lá do céu que não se vê, porque, por momentos, Veneza desaparece, visualmente, para ser substituída pelo eco dos campanários que cruzam San Marco e o Campo de San Polo, como se vibrasse «um gigantesco serviço de chá de porcelana, sobre uma bandeja de prata». E ao fim da tarde «segreda-nos a luz de Inverno, detida no seu curso pela parede de tijolo de um hospital ou chegando ao destino, o paraíso do frontone de San Zaccaria, depois da sua longa travessia através do cosmos. (...) Esta é a luz de Inverno no auge da sua pureza. (...) A única ambição das suas partículas é alcançar um objecto e, grande ou pequeno, torná-lo visível. É uma luz íntima, a luz de Giorgione ou Bellini, e não a de Tiepolo ou Tintoretto. E a cidade demora-se nela, saboreando o seu afago, a carícia do infinito de onde veio a luz.» No Inverno, Veneza acalmava por momentos os nervos de Joseph Brodsky, do mesmo modo que a luz (a sua luz) e o nevoeiro absorviam o perfil das colunatas e dos pátios. Num recanto determinado do Cannaregio, onde também andou Corto Maltese, o panorama que a partir da Ponte de la Saca se avista para a parte norte da laguna levou-o a afirmar estarmos aí diante da mais perfeita aguarela do mundo. A ilha cemitério de San Michele fica mesmo em frente, no quadrante Este. Ocupa praticamente todo o quadro. Para quem, como muitos, desejava morrer em Veneza, não de causas naturais, mas por vontade, num quarto de um palazzo, virado ao Grand Canal, e escrever, antes de comprar um Browning, algumas «elegias apagando cigarros nas lajes húmidas do chão» até se percebe. Mas Brodsky não veio a morrer em Veneza, mas em Nova York, com 56 anos, de ataque de coração, em 28 de Janeiro. Todavia, e como quis, encontra-se sepultado em San Michele, no distrito dos mortos da cidade que amou, atrás dos muros de tijolo que sempre o impressionaram, a pouca distância de outro distrito veneziano, o Cannaregio, ali entre esses secretos locais de Veneza, esses que se tornam mais belos quando chega o Inverno, num «tempo para nos esquecermos de nós próprios».

Etiquetas: , ,