março 20, 2007

Inutile Phare de la Nuit (2)

À noite, em redor de Porto Pim, na Horta, depois das casas brancas e das tabernas onde Lucas Eduíno, embalado pela melopeia sincopada dos pézinhos e sapateias e pelo ardor lento do vinho «de cheiro», conta a sua história de destino e maldição aos turistas ou viajantes que por acaso ali passam, ouve-se, junto às pequenas fábricas de cachalotes abandonadas, ainda com os ganchos e anilhas ferrugentas, a canção perigosa e lânguida das moreias, «tão antiga como as ilhas», mágica e silenciosa como as águas negras da baía, ou o canto agudo e ancestral dos cachalotes a chamar-nos de um fundo escuro e impossível no oceano imenso, algures num qualquer ponto real ou imaginado, e que, de uma ou outra forma, nunca poderemos ver. Como nos diz Antonio Tabucchi, a certa altura, num momento maravilhoso desse magnífico livro que é Mulher de Porto Pim e Outras Histórias (Trad. de Maria Emília Marques Mano para a Difel): «Às vezes cantam, mas só para si, e o seu canto não é um chamamento, mas uma forma de lamento angustiado. Cansam-se depressa, e quando cai a noite estendem-se sobre as pequenas ilhas que os transportam e talvez adormeçam ou olhem para a lua. Vão-se embora deslizando em silêncio e percebe-se que são tristes».
Fiquemos com outras passagens de Donna di Porto Pim, a começar na ilha mais longínqua, o Corvo:
«O deus do Remorso e da Nostalgia é uma criança com cara de velho. O seu templo ergue-se na ilha mais distante, num vale defendido por montes inacessíveis, perto de um lago, numa zona desolada e selvagem. O vale está sempre coberto por uma bruma leve como um véu, há altas faias que o vento faz murmurar e é um lugar de uma grande melancolia. (...) Os homens vão visitá-lo vestidos de miseráveis capas e as mulheres cobertas de xailes escuros; e todos estão em silêncio e às vezes ouve-se chorar na noite, quando a lua inunda de prata o vale e os peregrinos, estendidos na relva, embalam o remorso da sua vida
«E assim cheguei mesmo ao cimo do promontório e enquanto, observando o mar infinito, já me estava a abandonar ao mal-estar que o desengano provoca, uma nuvem azul desceu sobre mim e arrebatou-me para um sonho: e sonhei que te escrevia esta carta, e que eu não era o grego que partiu em busca do Ocidente e mais não voltou, mas que estava apenas a sonhá-lo

E enquanto as pequenas baleias azuis se passeiam ao largo, o fragmento da história de Marcel, no embalo do barco a costejar São Jorge, e da mulher luminosa que sorri para ele, debaixo do sol:

«Deve ser porque tenho pensado muito em ti, continuou, nestas ilhas, no sol. Agora falava quase sussurrando como se falasse para si própria. Não fiz senão imaginar-te, durante todo esse tempo, choveu sempre, via-te sentado numa praia, penso que foi demasiado longo. O homem pegou-lhe na mão. Também para mim, disse, mas nas paraias estive pouco, o que mais vi foi a máquina de escrever. E depois chove também aqui, a cântaros. A mulher sorriu

E depois:

«De qualquer modo escrevi outras coisas, prosseguiu ele, estas ilhas são de um tédio mortal, para passar o tempo não há outro remédio senão escrever. E além disso queria confrontar-me com uma dimensão diferente, passei toda a vida a escrever ficção. A mim parece-me mais nobre, disse a mulher, pelo menos é mais gratuita, e portanto, como dizer?, mais leve ... Oh sim, riu o homem, a delicadeza: par délicatesse j`ai perdu ma vie. Mas a certa altura é preciso ter a coragem de se medir com a realidade, pelo menos com a realidade da nossa vida. E depois, olha, a gente está sedenta de vida realmente vivida, está cansada da fantasia dos romancistas sem fantasia. A mulher perguntou baixinho: são memórias?».

E outros fragmentos: os que decidem partir e não voltar; a Horta; os acasos; as baleias adormecidas, a ilha absoluta do Pico; o regresso de uma caça; a história fantástica de Lucas Eduíno, em Porto Pim; os ventos sobre tudo o resto: Inutile Phare de la Nuit:

«Rupert tem o cabelo muito ruivo, sardas, uma cara patusca de Danny Kaye. Talvez me tenha dito que era escocês ou talvez eu o considere como tal devido à sua fisionomia. Em Londres trabalhava numa companhia de navegação: anos e anos sentado a uma mesa, com a luz eléctrica acesa, a sonhar os portos longínquos donde chegavam mercadorias exóticas. Assim, um dia pediu a liquidação, vendeu tudo o que tinha e comprou este barco. (...) Breezy foi com ele e agora vivem no barco. Seja benvindo a nossa casa, dizem rindo. Breezy tem um rosto franco muito cordial, um esplêndido sorriso e traz um vestido comprido às flores como se tivesse de enfrentar um garden-party e não uma travessia do Atlântico

«Para os navegantes que param na Horta é norma deixar no paredão do molhe um desenho, um nome, uma data. É um muro com uns cem metros de comprimento, onde se sobrepõem desenhos de barcos, cores de bandeiras, números, frases. Refiro uma entre muitas: Nat, de Brisbane. Vou para onde o vento me levar

«É esbelto, muito afuselado, foi construído com material de primeira qualidade. Deve ter navegado bastante. A este porto chegou por acaso. De resto as viagens são um acaso. Chama-se Nota Azul

«Imaginei que os dias de excessiva bonança e de sol intenso, quando sobre o oceano pesa um calor compacto, serão os raros momentos concedidos às baleias para regressar com a memória fisiológica à sua ancestralidade terrestre. É-lhes necessário uma concentração tão intensa e total que caem num sono profundo, como uma morte aparente: e assim flutuando, como brilhantes troncos cegos, conseguem recordar, como em sonho, um passado remotíssimo (...).»

«A ilha do Pico é um cone vulcânico que emerge de repente do oceano: não é mais do que uma alta montanha abrupta pousada sobre a água. Tem três aldeias: Madalena, São Roque e Lajes; o resto é rocha de lava, onde cresce de vez em quando um raquítico bacelo e alguns ananases silvestres

«Talvez porque ambos estão em extinção, digo-lhe por fim em voz baixa, vocês e as baleias, penso que foi por isso. Provavelmente adormeceu, não responde nada. Mas entre os dedos brilha a ponta do cigarro. A vela chia de forma lúgrube, os corpos imóveis no sono são pequenos montes escuros e a chalupa desliza sobre a água como um barco fantasma

«Querem a viola de arame que dá este som de feira melancólica, e eu canto-lhes modinhas pirosas onde a rima é sempre a mesma, mas tanto faz, eles não percebem e, como vês, bebem gin tónico. Mas tu, o que é que procuras, que todas as noites vens aqui? Tu és curioso e procuras outra coisa, porque é a segunda vez que me convidas a beber, mandas vir vinho «de cheiro» como se fossses dos nossos, és estranjeiro e finges falar como nós, mas bebes pouco e depois ficas calado e esperas que fale eu. Dissestes que és escritor e, no fundo, talvez a tua profissão tenha alguma coisa a ver com a minha

Inutile Phare de la Nuit: o destino em Porto Pim. Voltamos à história de Rupert e Breezy, que os ventos levaram à Horta e que agora os fazem partir de novo:

«Os copos batem mum brinde à viagem. Oxalá tenham bons ventos, é o que lhes desejo, agora e sempre. Rupert corre a portinha de uma estante e introduz uma bobina na aparelhagem estereofónica. É o Concerto K 271 para piano e orquestra de Mozart, e só neste momento compreendo porque o barco se chama Amadeus. (...) Penso que Rupert e Breezy atravessam os mares acompanhados pelos cravos e pelas melodias mozartianas e a coisa parece-me de uma estranha beleza, talvez porque sempre associei a música à ideia da terra firme, do teatro ou de uma sala com isolamento sonoro e na penumbra. A música adquire um tom solene e envolve-nos. Os copos estão vazios, levantamo-nos e abraçamo-nos. Rupert põe o motor a trabalhar, meto-me pela escadinha e num pulo estou no molhe. Cai uma luz macia sobre o aglomerado de casas de Porto Pim. O Amadeus dá uma volta e parte velozmente. Breezy vai ao leme e Rupert está a içar a vela. Fico a acenar com a mão até que o Amadeus, já com todas as velas pandas, alcança o largo

Inutile Phare de la Nuit ...

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