março 25, 2007

Inutile Phare de la Nuit (3)

Quantas vezes uma linha nos levará em direcção aos lugares mais improváveis, como «os passos da nossa vida guiados também pela combinação de poucas palavras»?
«Durante muito tempo trouxe na memória uma frase de Chateaubriand: Inutile Phare de la Nuit. Creio que lhe atribuí sempre um poder de desencantado conforto como quando nos apegamos a algo que se revela um inutile phare de la nuit e, contudo, nos permite fazer alguma coisa apenas porque acreditávamos na sua luz: a força das ilusões. Na minha memória esta frase andava associada ao nome de uma ilha longínqua e improvável: Ile de Pico, inutile phare de la nuit.» (Antonio Tabucchi; Donna di Porto Pim e Altre Storie; Trad. de Maria Emília Marques Mano; Difel).
O que também pode levar, no fim da viagem, a um poema de Robert Louis Stevenson:
«Deixa que a tua alma encontre uma
Âncora neste mundo da matéria. Fundeia aqui o teu corpo -
Que desde já este espectáculo imutável seja
A gravura nos teus olhos; e quando soar a hora
E a verde paisagem escurecer de repente -
Os últimos, os que acompanharem o teu cavalo no sonho
Acompanharão o teu corpo morto
(An End of Travel. Stevenson, Robert Louis. Poemas. Trad. de José Agostinho Baptista; Lisboa: Assírio & Alvim, 2006)

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março 20, 2007

Inutile Phare de la Nuit (2)

À noite, em redor de Porto Pim, na Horta, depois das casas brancas e das tabernas onde Lucas Eduíno, embalado pela melopeia sincopada dos pézinhos e sapateias e pelo ardor lento do vinho «de cheiro», conta a sua história de destino e maldição aos turistas ou viajantes que por acaso ali passam, ouve-se, junto às pequenas fábricas de cachalotes abandonadas, ainda com os ganchos e anilhas ferrugentas, a canção perigosa e lânguida das moreias, «tão antiga como as ilhas», mágica e silenciosa como as águas negras da baía, ou o canto agudo e ancestral dos cachalotes a chamar-nos de um fundo escuro e impossível no oceano imenso, algures num qualquer ponto real ou imaginado, e que, de uma ou outra forma, nunca poderemos ver. Como nos diz Antonio Tabucchi, a certa altura, num momento maravilhoso desse magnífico livro que é Mulher de Porto Pim e Outras Histórias (Trad. de Maria Emília Marques Mano para a Difel): «Às vezes cantam, mas só para si, e o seu canto não é um chamamento, mas uma forma de lamento angustiado. Cansam-se depressa, e quando cai a noite estendem-se sobre as pequenas ilhas que os transportam e talvez adormeçam ou olhem para a lua. Vão-se embora deslizando em silêncio e percebe-se que são tristes».
Fiquemos com outras passagens de Donna di Porto Pim, a começar na ilha mais longínqua, o Corvo:
«O deus do Remorso e da Nostalgia é uma criança com cara de velho. O seu templo ergue-se na ilha mais distante, num vale defendido por montes inacessíveis, perto de um lago, numa zona desolada e selvagem. O vale está sempre coberto por uma bruma leve como um véu, há altas faias que o vento faz murmurar e é um lugar de uma grande melancolia. (...) Os homens vão visitá-lo vestidos de miseráveis capas e as mulheres cobertas de xailes escuros; e todos estão em silêncio e às vezes ouve-se chorar na noite, quando a lua inunda de prata o vale e os peregrinos, estendidos na relva, embalam o remorso da sua vida
«E assim cheguei mesmo ao cimo do promontório e enquanto, observando o mar infinito, já me estava a abandonar ao mal-estar que o desengano provoca, uma nuvem azul desceu sobre mim e arrebatou-me para um sonho: e sonhei que te escrevia esta carta, e que eu não era o grego que partiu em busca do Ocidente e mais não voltou, mas que estava apenas a sonhá-lo

E enquanto as pequenas baleias azuis se passeiam ao largo, o fragmento da história de Marcel, no embalo do barco a costejar São Jorge, e da mulher luminosa que sorri para ele, debaixo do sol:

«Deve ser porque tenho pensado muito em ti, continuou, nestas ilhas, no sol. Agora falava quase sussurrando como se falasse para si própria. Não fiz senão imaginar-te, durante todo esse tempo, choveu sempre, via-te sentado numa praia, penso que foi demasiado longo. O homem pegou-lhe na mão. Também para mim, disse, mas nas paraias estive pouco, o que mais vi foi a máquina de escrever. E depois chove também aqui, a cântaros. A mulher sorriu

E depois:

«De qualquer modo escrevi outras coisas, prosseguiu ele, estas ilhas são de um tédio mortal, para passar o tempo não há outro remédio senão escrever. E além disso queria confrontar-me com uma dimensão diferente, passei toda a vida a escrever ficção. A mim parece-me mais nobre, disse a mulher, pelo menos é mais gratuita, e portanto, como dizer?, mais leve ... Oh sim, riu o homem, a delicadeza: par délicatesse j`ai perdu ma vie. Mas a certa altura é preciso ter a coragem de se medir com a realidade, pelo menos com a realidade da nossa vida. E depois, olha, a gente está sedenta de vida realmente vivida, está cansada da fantasia dos romancistas sem fantasia. A mulher perguntou baixinho: são memórias?».

E outros fragmentos: os que decidem partir e não voltar; a Horta; os acasos; as baleias adormecidas, a ilha absoluta do Pico; o regresso de uma caça; a história fantástica de Lucas Eduíno, em Porto Pim; os ventos sobre tudo o resto: Inutile Phare de la Nuit:

«Rupert tem o cabelo muito ruivo, sardas, uma cara patusca de Danny Kaye. Talvez me tenha dito que era escocês ou talvez eu o considere como tal devido à sua fisionomia. Em Londres trabalhava numa companhia de navegação: anos e anos sentado a uma mesa, com a luz eléctrica acesa, a sonhar os portos longínquos donde chegavam mercadorias exóticas. Assim, um dia pediu a liquidação, vendeu tudo o que tinha e comprou este barco. (...) Breezy foi com ele e agora vivem no barco. Seja benvindo a nossa casa, dizem rindo. Breezy tem um rosto franco muito cordial, um esplêndido sorriso e traz um vestido comprido às flores como se tivesse de enfrentar um garden-party e não uma travessia do Atlântico

«Para os navegantes que param na Horta é norma deixar no paredão do molhe um desenho, um nome, uma data. É um muro com uns cem metros de comprimento, onde se sobrepõem desenhos de barcos, cores de bandeiras, números, frases. Refiro uma entre muitas: Nat, de Brisbane. Vou para onde o vento me levar

«É esbelto, muito afuselado, foi construído com material de primeira qualidade. Deve ter navegado bastante. A este porto chegou por acaso. De resto as viagens são um acaso. Chama-se Nota Azul

«Imaginei que os dias de excessiva bonança e de sol intenso, quando sobre o oceano pesa um calor compacto, serão os raros momentos concedidos às baleias para regressar com a memória fisiológica à sua ancestralidade terrestre. É-lhes necessário uma concentração tão intensa e total que caem num sono profundo, como uma morte aparente: e assim flutuando, como brilhantes troncos cegos, conseguem recordar, como em sonho, um passado remotíssimo (...).»

«A ilha do Pico é um cone vulcânico que emerge de repente do oceano: não é mais do que uma alta montanha abrupta pousada sobre a água. Tem três aldeias: Madalena, São Roque e Lajes; o resto é rocha de lava, onde cresce de vez em quando um raquítico bacelo e alguns ananases silvestres

«Talvez porque ambos estão em extinção, digo-lhe por fim em voz baixa, vocês e as baleias, penso que foi por isso. Provavelmente adormeceu, não responde nada. Mas entre os dedos brilha a ponta do cigarro. A vela chia de forma lúgrube, os corpos imóveis no sono são pequenos montes escuros e a chalupa desliza sobre a água como um barco fantasma

«Querem a viola de arame que dá este som de feira melancólica, e eu canto-lhes modinhas pirosas onde a rima é sempre a mesma, mas tanto faz, eles não percebem e, como vês, bebem gin tónico. Mas tu, o que é que procuras, que todas as noites vens aqui? Tu és curioso e procuras outra coisa, porque é a segunda vez que me convidas a beber, mandas vir vinho «de cheiro» como se fossses dos nossos, és estranjeiro e finges falar como nós, mas bebes pouco e depois ficas calado e esperas que fale eu. Dissestes que és escritor e, no fundo, talvez a tua profissão tenha alguma coisa a ver com a minha

Inutile Phare de la Nuit: o destino em Porto Pim. Voltamos à história de Rupert e Breezy, que os ventos levaram à Horta e que agora os fazem partir de novo:

«Os copos batem mum brinde à viagem. Oxalá tenham bons ventos, é o que lhes desejo, agora e sempre. Rupert corre a portinha de uma estante e introduz uma bobina na aparelhagem estereofónica. É o Concerto K 271 para piano e orquestra de Mozart, e só neste momento compreendo porque o barco se chama Amadeus. (...) Penso que Rupert e Breezy atravessam os mares acompanhados pelos cravos e pelas melodias mozartianas e a coisa parece-me de uma estranha beleza, talvez porque sempre associei a música à ideia da terra firme, do teatro ou de uma sala com isolamento sonoro e na penumbra. A música adquire um tom solene e envolve-nos. Os copos estão vazios, levantamo-nos e abraçamo-nos. Rupert põe o motor a trabalhar, meto-me pela escadinha e num pulo estou no molhe. Cai uma luz macia sobre o aglomerado de casas de Porto Pim. O Amadeus dá uma volta e parte velozmente. Breezy vai ao leme e Rupert está a içar a vela. Fico a acenar com a mão até que o Amadeus, já com todas as velas pandas, alcança o largo

Inutile Phare de la Nuit ...

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