junho 29, 2007

Imenso Mediterrâneo Branco (2)

Predrag Matvejevitch atravessou o imenso mar interior, o imenso Oeste branco do Mediterrâneo de um lado a outro, desde as planícies croato-panónias às areias da Tunísia, da vertente dos Apeninos às gargantas do Montenegro, acima de Kotor, das Cíclades gregas ao arquipélago italiano das Lipari, do norte da Líbia ao litoral turco, passando pela Síria, de Marselha a Alexandria, de Atenas a Roma, do mediterrâneo católico ao mediterrâneo ortodoxo, da cultura da oliveira ao scirocco, entre o Fásis e as Colunas de Hércules. Desenhou curvas, contou as fronteiras, seguiu as cartas e os mapas, orientou-se pelo voo das gaivotas e pela espessura da espuma das ondas, subiu aos mosteiros, aos meteoros da Grécia, avançou para dentro das terras, viu como algumas são ainda mais marítimas do que outras que se encontram na orla, deteve-se nas capitanias, nos pontões abandonados, traçou os limites, as rotas, ouviu as fábulas, as superstições e as línguas antigas, regionais, costeiras, cheirou as redes e as tintas das embarcações, reparou nos molhes a esfumarem-se no azul e parou por fim, em oração, a contemplar o que viu. De tudo, e por tudo, ofereceu-nos esse itinerário indefinível, essa mistura de poema, romance e ensaio, de investigação histórica e tratado de filosofia, esse breviário barroco e infinito, a obra inesquecível, leve e solar como mar que a envolve, que é Mediteranski Brevijar. Robert Bréchon, que assina o Posfácio, intitulado, Cenas de um Mundo Terráqueo, escreve: «Predrag Matvejevitch percorreu do mesmo passo o espaço e o tempo do Mediterrâneo. Viu com os seus próprios olhos grande parte das suas margens. Armazenou grande parte do saber que se foi acumulando desde que há quatro mil anos ali há homens que navegam, pescam, pensam, fazem a guerra, constroem cidades. O que caracteriza o Mediterrâneo é uma relação singular entre a terra, o mar e o homem». Claudio Magris, que introduz o livro, concretiza: «A cultura e a história mergulham directamente nas coisas, nas pedras, nas rugas dos rostos humanos, no gosto do vinho e do azeite, na cor das ondas. Matvejevitch tenta agarrar o Mediterrâneo, abandonar-se ao encanto desta palavra, mas também circunscrever rigorosamente o seu sentido, traçar limites e fronteiras. Segue as diversas rotas mediterrânicas, as do tráfico do âmbar e das peregrinações dos Judeus sefardins, da área da vinha e do curso dos rios; as fronteiras tornam-se então movediças e ondulantes: embora coerentes e concêntricas, desenham curvas ideais como as linhas isóbaras ou como as cristas das ondas».

Etiquetas: , ,

junho 26, 2007

Imenso Mediterrâneo Branco (1)

Na Antiguidade conta-se que a cada ponto cardeal correspondia uma côr. O Mar Vermelho correspondia ao Leste; o vermelho indicava o Leste. O Norte era assinalado pelo negro, como o Mar Negro. O Oeste é o branco, o branco do imenso mar interior, o mar de Mediteranski Brevijar (Breviário Mediterrânico), o livro solar, a epifania de Predrag Matvejevitch. Sei que a edição portuguesa, da Quetzal, de 1994, está esgotada há muito. Ouvi dizer em tempo que iria haver uma reedição, mas nem sinal. Comprei o livro nos anos 90 e depois perdi-o. Por ventos mediterrânicos, talvez o maestral, e após anos de tentativas falhadas, um dia dei de caras com ele num alfarrabista do Bairro Alto, que, aliás, já me levou a outras preciosidades desaparecidas. Enquanto não conseguia o livro em Portugal arranjei uma edição francesa da Fayard. Entretanto também o procurei na Croatia, em Dubrovnik, numa livraria da Placa Stradum, e em Rijeka, mas não havia. Entre nós a tradução para a Quetzal foi feita por Pedro Tamen a partir da versão francesa aprovada pelo autor. A obra que Matvejevitch escreveu em 1987 é simplesmente genial. É difícil de classificar, tanto que, já de si, é ela mesma um verdadeiro breviário de géneros, um livro com muitos livros dentro: romance, poesia, ensaio, narrativa de viagens, relato imaginário, registo real e fragmentado, escrita de divulgação científica, abordagem histórica, política e geográfica, tratado filosófico. Breviário Mediterrânico é composto por três partes: Breviário, Cartas e Glossário, as quais são no fundo três diferentes formas e tonalidades de tratar o mesmo assunto. A Introdução, intitulada Para uma Filologia do Mar, é de um outro grande andarilho europeu, Claudio Magris, que escreveu um ano antes, em 1986, Danúbio, outro livro também ele fabuloso, do fôlego e cariz deste Mediteranski Brevijar, só distinta na incidência geográfica e no itinerário. O Posfácio do livro tem como título Cenas de um Mundo Terráqueo e é de Robert Bréchon. Magris escreve na Introdução que a obra de Predrag se assemelha ao empreendimento do relojoeiro catalão (que Matvejevitch conhecera em Alexandria e que apaixonadamente, e contra uma falta exorbitante de dados, estava a reconstituir o catálogo da famosa biblioteca destruída pelo sultão Omar), no que mistura de rigor e de temeridade, de precisão científica e de epifania do infinito. Ainda Magris: «Que livro é este, que com requintada discrição desafia os géneros literários? O Mediterrâneo de Matvejevitch, ele mesmo o diz, não é apenas o espaço histórico-cultural, estudado magistralmente e talvez definitivamente por Braudel, nem o espaço místico-lírico celebrado por Gide ou por Camus. Obra fascinante, que ao mesmo tempo tem algo de portulano, de léxico e de ensaio/romance assente numa absoluta fidelidade ao real, o livro de Matvejevitch pode levar a pensar, na sua total autonomia e na sua diversidade, em La Mer de Michelet, outro livro estranho e genial, em que o grande historiador, depois de ter sondado nos arquivos a história da França e a da Revolução, consagra a sua atenção infatigável à estratificação geológica das costas e aos faróis, às conchas e à flora oceânicas, às estações balneares e às histórias de sereias.» O registo de Matvejevitch é desconcertante. Prende-nos e envereda por caminhos que não esperaríamos. Detem-se no que julgamos acessório quando na verdade se trata do essencial, suspende-se nos pormenores, em cada grão de areia, em vez de se alargar nos sentidos latos e visíveis, leva-nos numa vista aérea, leve, a abarcar o mínimo de cada possibilidade. Magris determina (vale a pena seguir o texto): «lê o mundo, a realidade, os gestos e as entoações das pessoas, o estilo das capitanias, a meneira indefinível como a natureza se prolonga sub-repticiamente na história e na arte, como as formas das costas se vão reencontrar nas da arquitectura, a influência no traçado das fronteiras da cultura da oliveira, da extensão de uma religião ou da migração das enguias, as histórias e os destinos cuja lembrança é guardada pelos glossários náuticos e pelas línguas desaparecidas, a linguagem das ondas e a dos cais, as gírias e falares que mudam imperceptivelmente no espaço e no tempo». E remata em Para uma Filologia do Mar: «O potamólogo que, no livro Danúbio, tentou sobretudo exprimir a grande nostalgia do mar, e em especial do Adriático, inveja fraternalmente o talassólogo Matvejevitch; e alegra-me que o Danúbio se lance no mar, apesar de, infelizmente, o fazer no Mar Negro e não no Mediterrâneo». Por sua vez, Robert Bréchon escreve no Posfácio que o texto de Predrag é o equivalente, para a geografia, do que Marguerite Yourcenar fizera para a história ao recriar o interior da personagem Adriano (...) e situa-se na faixa estreita que permaneceu livre entre o discurso académico e o discurso «poetizante». E analisa a três partes do livro: «o Breviário é o catálogo dos tópicos de todos os discursos possíveis sobre o Mediterrâneo: portos, ilhas, ventos, correntes, costas, faróis, terrenos, línguas, utensílios, migrações, batalhas navais, etc. (...) Este texto apresenta-se ao mesmo tempo como uma suma de conhecimentos rigorosos e como o resumo de uma enciclopédia infinita. É escrito como um poema, numa prosa cheia de imagens, ritmada e, poderíamos dizer, rimada pelo retorno, no fim de cada fragmento, do vocábulo que esta repetição encantatória sacraliza até ao fim: «Mediterrâneo»; (...) as Cartas tornam concretamente visíveis os lugares mediterrânicos. A carta geográfica é um outro espaço da viagem, é uma viagem, e o autor por lá deambulou tanto ou mais que por terra ou por mar. (...) Por fim, o Glossário retoma todos os temas do Breviário e das Cartas, para explicar os termos, comentar os relatos, indicar as fontes, fornecer as referências, aludir até, aqui e além, às circunstâncias da composição do livro.»
Predrag Matvejevitch começa assim: é o primeiro parágrafo, dá-nos logo aí o tom de todo o texto:
«Não sabemos ao certo até onde vai o Mediterrâneo, nem que parte do litoral ocupa, nem onde acaba, tanto em terra como no mar. Para os Gregos, de Leste para Oeste, estendia-se do Fásis, no Cáucaso, até às Colunas de Hércules; consideravam implícita a sua fronteira natural a Norte e às vezes não se preocupavam com os seus limites a Sul. Os sábios da Antiguidade ensinavam que os confins do Mediterrâneo se situam onde a oliveira se detém. Nem sempre nem em toda a parte é assim: há lugares na costa que não são marítimos, ou que o são menos que outros, mais afastados dela. Há lugares em que o continente não se alia ao mar, em que se revela difícil a concordância entre eles. Noutros pontos, o carácter mediterrânico abrange mais vastas porções do continente, penetra-as mais com a sua influência. O Mediterâneo não é apenas uma geografia
E mais à frente: para as ilhas - como o será para as penínsulas, os golfos, as capitanias, as costas, os mosteiros:
«As ilhas são lugares peculiares. Classificam-se de acordo com critérios diversos: a sua distância da costa, a natureza do canal que dela as separa, a possibilidade de lá chegar a remos ou a nado. É nelas que melhor se percebe como o mar aproxima e como divide. As ilhas distinguem-se igualmente pela imagem que oferecem ou pela impressão que deixam: umas parecem flutuar ou afundar-se, outras parecem ancoradas ou petrificadas; estas não passam de fragmentos incompletos, arrancados à costa, aquelas largaram a tempo o continente e, independentes, bastam-se a si mesmas. Algumas permanecem numa desordem e num abandono mais ou menos completos, enquanto noutras tudo está arrumado, a ponto de se acreditar que é possível fazer reinar uma ordem ideal. Atribuem-se às ilhas estados de alma ou características humanas: também elas são solitárias, tranquilas, sequiosas, nuas, desertas, desconhecidas, malditas, afortunadas, às vezes felizes ou abençoadas. Não se agrupam apenas segundo as suas semelhanças, mas também de acordo com as suas conexões. A Antiguidade oferece-nos dois modelos de divisão: as Espórades e as Cíclades no mar Egeu (este tipo de ordenação serviu de modelo a certas ordens monásticas, os cenobitas, por exemplo, ou os anacoretas). As Baleares com as Pitiúsas, as Kornat adriáticas, o pequeno arquipélago das Elafitas, perto de Dubrovnik, o das ilhas de Hyères entre o golfo do Leão e a «Côte d`Azur» e, mais abaixo, Querquena no Sul da Tunísia, as ilhas Lipari, ou ainda o arquipélago toscano entre o mar Tirreno e a costa da Ligúria, são agrupados de modo semelhante. Certas ilhas carregadas de história, Malta, por exemplo, com a sua ordem de cavalaria, a Sicília, com um glorioso passado, e talvez a Córsega, apelidada de «ilha da beleza», não aguentam generalizações. Os ilhéus, em especial quando não possuem água potável nem dolinas, são os mais abandonados: os que não se integram num arquipélago perdem o seu lugar no protocolo da costa e ficam para sempre órfãos, celibatários ou dissidentes. Os escolhos que enxameiam as proximidades das ilhas inspiraram relatos de horror e de fantasmas: no Mediterrâneo, mais que em qualquer outro lado, acredita-se em contos
Matvejevitch é croata, nasceu a cerca de 50 km da belíssima costa da Dalmácia, em Mostar, na Herzegovina, ao que não será de forma nenhuma alheio o pendor do Breviário Mediterrânico. «Em Mostar, diz ele, sopram os ventos do mar. Debaixo da velha ponte turca voam guinchos de uma espécie marinha; muitas vezes, pelo meio dia, o mistral». É professor em importantes universidades da Europa, eminente especialista em estudos românicos da Universidade de Zagreb, autor dessa brilhante obra de crítica historiográfica que é Pour une poétique de l´événement (1979), uma grande voz da Mitteleuropa e das planícies croato-panónias, um dos mais distintíssimos intelectuais europeus do nosso tempo e, afinal, inventor, como diz Bréchon, de uma nova arte de escrever, com este magistral Mediteranski Brevijar. Em criança, quando vivia em Sibenik, na costa dálmata, deixava-se fascinar pelos rios e pelas costas mediterrânicas e a si mesmo perguntava porque é que a faixa litoral é por vezes tão estreita e tão curta, e porque é que as gentes que vivem na costa têm outros hábitos e cantam outras canções. Matvejevitch é ainda autor de outros textos fundamentais, tais como Epistolaire de L´Autre Europe, de 1993 (entre nós: Epistulário Russo, também publicado pela Quetzal, em 1995, igualmente com tradução de Pedro Tamen e Introdução de Robert Bréchon), L´île Méditerranée/Photographies de Mimmo Jodice, que recomendo vivamente e pode ler-se como uma espécie de súmula de Breviário Mediterrânico, e esse não menos belíssimo périplo poético por uma Veneza latente e invisível, um outro autêntico breviário, no tom e no conteúdo, mais do que obrigatório para os amantes da cidade do Adriático, intitulado Druga Venecija (L´Autre Venise), que se pode encontrar também na Fayard. Mediteranski Brevijar é um livro como deviam ser muitos livros: cada palavra e frase pressentem uma infinitude de outras coisas, uma evocação, uma enumeração, uma análise e um itinerário exaustivo. Passa por nós como o vento que nos branqueia a cara à vista do arquipélago das Elafitas, em Dubrovnik, ou com os reflexos do brilho da água quente de Rovinj, na Ístria. Breviário Mediterrânico é uma viagem como deveria ser cada viagem: completa, com o seu «alegre saber», e gradualmente mais leve e parecida com um fantasma de si própria: na memória e na nostalgia. Como um imenso mediterrâneo branco.

Etiquetas: , , , , , ,

junho 21, 2007

As Ilhas sem Metáfora

«Quando mais nada tiveres a dizer, conduz/um dia inteiro contornando a península./O céu tão alto como sobre uma pista,/a terra sem marcas que digam se chegamos,//sempre a caminho, mas sempre aquém de avistar terra./Ao sol-pôr, horizontes sorvem mar e colina,/o campo lavrado engole a branca empena/e estás de novo no escuro. Agora relembra//o brillho da areia, um tronco em silhueta,/aquela rocha que esfarrapava as ondas,/aves marinhas com pernas como andas,/ilhas navegando por entre a névoa,//e regressa a casa ainda sem nada p`ra dizer/a não ser que agora lerás qualquer paisagem/assim: a nitidez das coisas em suas formas,/água e terra definidas nos seus extremos

The Peninsula; poema de Seamus Heaney (de Door into the Dark, 1969); Trad. de Rui Carvalho Homem; Da Terra à Luz - Poemas 1966-1987; Relógio D`Água Editores: 1997)

Etiquetas: , , ,

junho 14, 2007

As Ilhas como Metáfora: O Espelho das Ilhas

«A Ilha será concebida à imagem de uma paisagem mental? É o que Jean Grenir esboça, a partir de 1933, num pequeno livro a redescobrir, Les îles. «Na altura em que descobri Les îles, queria escrever, creio», recorda Albert Camus no seu prefácio. «Mas só me decidi verdadeiramente depois dessa leitura.» Não há razão para ficar surpreso com o impacte tão forte do livro no autor do Mito de Sísifo. Nesse texto a ilha não passa de uma metáfora: «A viagem descrita por Grenier é uma viagem no imaginário e no invisível, uma busca de ilha em ilha, como a que Melville, com outros meios, ilustrou em Mardi. O animal goza e morre, o homem maravilha-se e morre. Onde fica o porto?» Não há porto, provavelmente. Mesmo Ítaca poderia ser uma armadilha para Ulisses. As ilhas são exílio, prisão, éden, matriz, voluptuosidade, laboratório, excesso, iniciação ... Aqueles que as habitam, que as observam, que escrevem sobre elas, reflectem-se em todas essas imagens de insularidade - projectam-se aí. No espelho das ilhas.»

Etiquetas:

junho 06, 2007

As Ilhas como Metáfora: A Ilha do Além

A Ilha do Além
«Para os povos navegadores existem sempre ilhas para lá do horizonte. Ilhas onde dizem esconder-se a felicidade. São ilhas dos bem-aventurados, plenas de harmonia sob a égide de Apolo, de que fala Hesíodo aos gregos desde o século VIII a.C. A ilha representa neste caso a promessa da salvação. Na mitologia celta os druidas iam a Inglaterra à procura do aperfeiçoamento da sua doutrina (recordai-vos de Panoramix que se desloca a uma conferência de druidas no album Asterix e os Godos), mas também na busca de uma espécie de mundos paralelos - como conta, por exemplo, Yeats, em The Celtic Twilight, publicado em 1893 -, onde se celebra a festa de Samain, a 1 de Novembro, o Ano Novo dos druidas, dias em que os mundos dos vivos e dos mortos entravam em comunicação. A ilha suscita, portanto, uma dimensão mística. É por essa razão que, na lenda do Graal, a busca do cálice sagrado deve levar à ilha de Monsalvat, a ocidente dos mares, onde o curso do tempo está suspenso. O Graal, cálice da Última Ceia onde foi recolhido o sangue de Cristo, surge a partir do século XII, mas numerosos contos celtas anteriores a essa data falam de um vaso mágico contendo o néctar da vida eterna, escondido numa ilha. Outra ilha, terra matriz de toda a potência, como em certos textos gauleses nos quais Cena, a ilha de Sein, era habitada por sacerdotisas dotadas de espantosos poderes de previsão. E se o Éden era um jardim, a tradição muçulmana vê o paraíso terrestre numa ilha.» (texto de Cleménce Boulouque; Lire; Junho 2004; Trad. de João carlos Barradas)

Etiquetas: ,