janeiro 29, 2007

Tempo di Viaggio: uma Nostalghia (1)

Bagno Vignoni (Província de Siena, Toscana, Itália)
Uma viagem é possível. Para outra mais assombrada, efeito de uma busca interior ou de uma qualquer nostalgia. Em 1979 Andrej Tarkovszkij está em Itália na companhia do poeta e argumentista italiano Tonino Guerra. Ambos vão, por um mês, iniciar um Tempo di Viaggio, uma jornada, física e espiritual, à descoberta de um local, também ele real e mental, marcado no espírito de Tarkovszkij para as filmagens de Nostalghia. Guerra, o anfitrião, conduz o realizador russo através das belezas tradicionais e turísticas da Itália, de Nápoles em direcção a sul, por Sorrento e Lecce. Mas Tarkovszkij procura um lugar secreto, já visualizado, objecto de uma escolha que só ele sabe qual é, mesmo antes de lhe dar forma. A sua tensão interior libertou-se da realidade para se transformar numa relação emocional e contemplativa com essa realidade. Andrej sabe que tudo se encaixará de uma forma subtil e única num só local e num estado de alma. Durante este tempo de viagem as estradas de Itália e as vilas, as árvores e as piazzas alternam com as imagens de casas, varandas e jardins traseiros onde Tonino e Andrej reflectem sobre os fundamentos do artista e como ele - refere o russo - se deve sacrificar pela sua arte; para que o que fizer contenha as belezas, acrescenta Tonino Guerra. No fim, Andrej encontra realmente o que procura. A sua busca de Nostalghia, ou, na verdade, a sua busca de uma nostalgia, de uma unidade interior e de um sentido, termina nas paisagens da Itália central, nas vilas medievais das regiões de Siena e Arezzo, na Toscana, e em dois momentos/locais determinantes e figurativos: com o fresco da Madonna del Parto, de Piero della Francesca, em Monterchi, e nas termas de Bagno Vignoni. O resultado desta etapa à procura de uma outra, desta investigação proposta por Tarkovszkij, foi concretizado em Tempo di Viaggio, o documentário, de cerca de 66 minutos, escrito e realizado por Andrej e Tonino para a TV italiana. A lenta progressão dos lugares e imagens desta viagem é já o prenúncio do que estava a acontecer no espírito de Andrej Tarkovszkij e que ele materializará, interiramente, em 1983, com Nostalghia. De facto a sucessão artística e poética das representações de Tempo di Viaggio, em vez de apresentarem um facto concreto ou possibilitarem conclusões, postulam a caminhada de um personagem dentro e à volta de si mesmo, a lidar com as suas interrogações. Não há acção, nem factos, nem desenvolvimento do enredo; há apenas simplicidade - tal como - e é Andrej que a certo passo o afirma - nos filmes de Antonioni, na música de Bach, em Leonardo e nos livros de Tolstoy. É a iniciação de um processo de transformação em que alguém se torna cativo de um ambiente e nele encontra o propósito da sua pesquisa. A busca cumpre-se na contemplação do rosto da Madonna del Parto, que a Andrej lhe lembra o da sua mulher, e na bruma que de manhã cobre a piscina de Santa Caterina da Siena, nas termas de Vignoni, onde os aldeões se banham para reclamar a juventude. Tarkovskzkij usará efectivamente estas imagens e ideias, mais tarde, no seu filme definitivo. Nele, como aqui em Tempo di Viaggio, também não há um enredo, nem acontecimentos, apenas imagens e fragmentos de um mundo interior, psicológico. Em Nostalghia, Gortchakov, a figura central (um espelho do próprio Andrej), é um poeta que parte para a Toscana com o intuito de reunir material para escrever o libreto de uma ópera sobre o compositor russo do século XVIII Maksim SazontoviC Berezovskij, que viveu em Itália, onde obteve fama e reconhecimento, mas cuja inexorável nostalgia pela sua Rússia natal o levou a voltar, onde pouco tempo depois se suicidou. Gortchakov, acompanhado pela sua tradutora Eugenia (Domiziana Giordano), percorre as colinas da Toscana para ver a Madonna, porque o seu rosto (tal como a Tarkovszkij) lhe lembra o da sua mulher na Rússia. Sózinho, enquanto Eugenia se aventura pelas redondezas, Gortchakov enceta, como Maksim Berezovskij, uma peregrinação interior, uma nostalgia (como também foi a de Andrej Tarkovszkij no seu exílio), perfeitamente ilustrada no filme pelo contraste entre a paisagem monocromática da Rússia e a idílica Itália rural, que só vai encontrar paz, alívio e sentido nas águas cálidas de Bagno Vignani. Nostalghia é certamente (a par de Zerkalo, de 1975) o filme de Tarkovszkij com maior expressão poética, uma projecção exacta da sua alma, das suas nostalgias, uma das obras mais melancólicas, contemplativas e simbólicamente obscuras do cinema: «o retrato de alguém em profundo estado de alienação em relação a si próprio e ao mundo, incapaz de encontrar um equilíbrio entre a realidade e a harmonia pela qual anseia, num estado de nostalgia provocado não apenas pelo distanciamento em que se encontra do seu país, mas também por uma ânsia geral pela totalidade da existência» (Tarkovszkij, Andrej. Sculpting in Time; Esculpir o Tempo. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998). Afinal a descoberta de uma realidade abstracta e de um sentido último que fora, como vimos, iniciado na mente de Andrej (e também de Gortchakov, e porventura de Berezovskij), em Tempo di Viaggio. Tempo de Viagem é pois o exemplo de como um começo pode servir outro começo, de como uma viagem, seja ela qual for e como for, se pode - e deve - empreender para nos conduzir a uma outra mais fundamental e perene: seja a do significado da vida e da constatação do efeito que a realidade exerce sobre nós, seja apenas aquela que cada um procura num certo momento, a propósito de um lugar, de uma paisagem ou de uma visão, de uma lembrança ou descoberta, por um fresco de Piero della Francesca ou por uma peça de Bach. Afinal o caminho de uma Nostalghia contida noutra nostalgia, que por sua vez se encontra noutra, e noutra, e em cada um de nós, fragmento atrás de fragmento. Como o é, neste tempo de viagem, a imensa nostalgia russa - como são sempre todas as nostalgias russas - em que Tarkovszkij conversa acerca da sua casa distante numa aldeia do seu país natal, sobre os campos cultivados e os tapetes de flores, e Guerra recita um poema seu no dialecto romagnolo. É o Tempo di Viaggio, de cada viagem e de cada Nostalghia desse tempo e dessa viagem. Fragmento sobre fragmento, na procura do irrecuperável.

«Um cesto cheio de fruta é a obra acabada. É certo. Enquanto um passeio na floresta será sempre uma questão pessoal sobre passeios e ar fresco.» (Andrej Tarkovszkij)

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janeiro 25, 2007

Deixar Veneza

Há muitas formas de abordar Veneza, de chegar. Por caminho de ferro, em Venezia-Mestre ou Santa Lucia, de barco, em mar alto, no Adriático, através da linha nº 1 ou nº 82 do vaporetto, passar em Cà d`Oro, San Zaccaria, Accademia, chegar pelo Lido, ir no Invervo, na Primavera, ir de casaco de pele, gorro e botas altas de camurça, ou em calças de linho azul, dobradas em baixo, e chapéu de palha, com um fita, descer as escadarias da estação, à noite, com a boquilha ou o charuto na boca, cheirar as algas geladas do Canal Grande ou dar uma olhadela para a direita, para águas negras, onde começa o infinito, ficar a ver os primeiros reflexos, de nós mesmos, ou as estrias dos pallazzi, e adivinhar os caminhos por aí adentro, por uma cidade secreta, que conta histórias ocultas, que as sombras dos pátios e as ruas do Cannaregio suspendem nos dias quentes de Setembro, junto às três estátuas Dei Mori. Mas também há muitas maneiras de deixar Veneza. Partir por momentos, por vinte anos, ou para sempre, partir com os olhos cheios de lágrimas, imitando Mahler, partir simplesmente, depois de beber um bellini, subir o Canal até Santa Lucia ou sair directamente da Isola di San Clemente, através da laguna pastosa e lisa à hora em que o sol parece um aviso de um fim ou um grande vitral ou mosaico de San Marco. Mas, entre todas as possíveis vamos agora partir de duas formas, em dois momentos distintos, um mais feliz, escorreito e felino, outro mais mortal e físico, quase barroco, um deles num soalheiro dia de Inverno, com Joseph Brodsky, em Watermark, outro com Thomas Mann em Der Tod in Venedig, quando o sciroco toma conta das vontades e amolece os visitantes, extasiados com Tintoretto, nas escadas das igrejas dos campi:
  1. «Convenci-me há muito da virtude que é não nos consumirmos na vida das nossas emoções. Há sempre trabalho bastante para nos entreter, não falando já no vasto mundo lá fora. Em última análise, há sempre esta cidade. Enquanto ela existir, não creio que eu, ou seja quem for, possa deixar-se hipnotizar ou ofuscar por tragédias românticas. Lembro-me de um dia - o dia em que me preparava para partir, ao fim de um mês aqui passado sozinho. Acabava de almoçar numa pequena trattoria, no extremo mais distante das Fondamente Nuove, peixe grelhado e meia garrrafa de vinho. Com essa refeição no papo, dirigi-me para o sítio onde ficara alojado, para ir buscar as malas e apanhar um vaporetto. Caminhei um quarto de milha ao longo dos Fondamente Nuove, um pequeno ponto móvel nessa gigantesca aquarela, e depois virei à direita, no hospital de Giovanni e Paolo. Estava um dia quente, soalheiro, o céu azul, um perfeito encanto. E, de costas para as Fondamente e para San Michele, rente ao muro do hospital, quase a aflorá-lo com o ombro esquerdo e dando a cara ao sol, de olhos semicerrados, sento de repente: sou um gato. Um gato que ainda agora comeu peixe. Se algúem me tivesse dirigido a palavra nesse instante, eu teria respondido com um miado. Foi uma felicidade animal, absoluta» (Watermark. Marca de Água; Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993).
  2. «A atmosfera da cidade, aquele odor levemente choco de charco e mar, que com tanta urgência o impelira de fugir, inspirava-o agora em fôlegos profundos, enternecidos, dolorosos. Seria possível que tivesse ignorado, que tivesse descurado quanto o seu coração estava apegado a tudo aquilo? O que de manhã fora meio lamento, vaga dúvida quanto à justeza da sua atitude, transformava-se agora em pesar, em verdadeiro sofrimento, em angústia tão amarga, que várias vezes lhe fez aflorar as lágrimas aos olhos e que nunca teria imaginado possível. O que mais lhe custava e que, por momentos, lhe parecia mesmo insuportável era manifestamente a ideia de que não voltaria a ver Veneza, de que aquilo era um adeus para sempre» (Der Tod in Venedig. Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978).

Acqua alta!

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Fábula

«O leão grego perde a sua pele de serpente setentrional entre as brumas de Veneza»
in Favola di Venezia, Hugo Pratt, 1981

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janeiro 24, 2007

Olhar de Novo

Joseph Brodsky deixa expressamente entender no seu Watermark não ter nutrido grande simpatia por Der Tod in Venedig (Death in Venice; Morte em Veneza), de Thomas Mann, bem como pelo filme de Luchino Visconti, de 1971, com Dirk Bogarde no papel de Gustav von Aschenbach e a música da 5ª Sinfonia de Mahler. Mas Brodsky acaba por ceder quando escreve (Watermark; Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993): «Mesmo assim, a longa sequência inicial, com o Sr. Bogarde numa cadeira de repouso, a bordo de um navio, fez-me esquecer os méritos ou deméritos da obra e lamentar não sofrer de uma doença mortal; ainda hoje sou capaz de reviver esse sentimento». Mas de uma ou outra maneira, partilhemos ou não a opinião de Brodsky, a obra de Mann é um prodígio do século passado (1912) e a sua adaptação por Visconti um dos mais belos filmes da história do cinema. Não vou fazer qualquer abordagem específica a Der Tod in Venedig nem ao filme de Visconti porque não é o lugar, nem tão pouco me considero habilitado. E todos sabemos de antemão qual é a história e do que se trata. E do que se trata é da busca da beleza, do belo, seja qual for e como nos apareça. Mesmo que Mann a entenda numa perspectiva mais platónica, como uma forma, como algo em em si e por si, e que devemos procurar abertos a todas as possibilidades («Pois a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é - nota bem! - a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos (...) e por isso ela é também caminho do artista para o espírito»; citamos Der Tod in Venedig; Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978). Ou Brodsky considere, ainda em Watermark, que «a beleza não pode ser tomada como um alvo, que ela é sempre um subproduto de outras demandas, muitas vezes banalíssimas». Seja como for, em Veneza, no Inverno, «os leões alumiam os nossos crepúsculos» (Watermark) e na Primavera, e com o início da época balnear, «sob um céu pálido e toldado, quando mar jaz, parado e mortiço (...), limitado ao largo por um horizonte insípido que parecia próximo e tão recuado da praia que deixava a descoberto faixas sucessivas de longos bancos de areia», julgamos «cheirar no ar o odor fétido da laguna» (Der Tod in Venedig; Morte em Veneza, continuamos com a tradução de Sara Seruya para a edição da Europa-América). Aqui, no livro de Mann deixámos definitivamente o Inverno para sentir os avanços da estiagem. E o perigo, a vaga impressão na atmosfera e nas ruas e canalli de uma cidade tolhida por um calor espesso e pelo sciroco angustia tremendamente Gustav Von Aschenbach, que nisso pressente uma ameaça, um fim próximo, «uma desfiguração estranha do mundo». O mal, a doença subreptícia, que tínhamos entrevisto em Don`t Look Now, de Roeg (mas no Inverno), adensa-se lentamente e de outra forma à medida que Von Aschenbach prolonga a sua estadia em Veneza e acentua o êxtase pelo jovem aristocrata polaco Tadzio, a personificação do belo. No filme de Visconti, o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler faz pender a balança ainda mais para o lado da incerteza, do torpor e de uma mágoa e fôlego insuportáveis. Von Aschenbach, que no livro de Thomas Mann é um escritor, é na obra de Luchino Visconti um músico - há aqui uma aparente e parcial contradição, pois parece que Mann se inspirou para escrever o seu livro quando viu o compositor Gustav Mahler, caído em lágrimas (seria da perfeição, da distribuição da luz?), na estação de Santa Lucia, a deixar Veneza; fez, contudo, que o protagonista da história fosse músico, mas deu-lhe o nome de Gustav, como primeiro nome; Visconti pegou no nome de Mann mas fez de Aschenbach músico, esse criador da mais incorpórea das artes, e rematou a sua obra com a música imortal do verdadeiro Gustav, o Mahler -, um músico que no seu quinquagésimo aniversário deixa Munique, por uma súbita sensação de «vertigem de fuga e(...) avidez de libertação», e parte para o Sul, para Veneza, onde decide abordar a cidade da única maneira que ela deve ser abordada, a única que faz sentido, a mais perfeita: por barco, em mar alto. É aqui que entroncamos na tal longa sequência inicial, do filme de Visconti, com o Sr. Bogarde, na cadeira de repouso, de que Brodsky fala. A música acentua o carácter melancólico da navegação do vaporetto, com Von Aschenbach, de olhar parado, sofrido, doentio, a ver a aproximação de San Marco. É um momento único em todos os sentidos. Um momento magistral do cinema, que o livro de Mann também prodigiosamente insinua, faz ver, pelo suporte da literatura. Gustav Von Aschenbach, uma vez no cais de San Marco, pedirá a um gondolieri que o leve, mais a bagagem, à ilha do Lido. Mas logo ali, antes de embarcar, «tudo aquilo lhe aparecia como prenúncio de algo de invulgar, der-se-ia que começava a envolvê-lo um alheamento próximo do sonho» (continuamos a citar Morte em Veneza, da Europa-América), como se Veneza já estivesse contaminada por algo imperceptível, que pouco a pouco, durante a temporada estival de Aschebach no Hotel des Bains, no Lido, se iria instaurar e pegar-se, tal uma ferida, com os cheiros da laguna e o sciroco, numa mistura real e impossível de dor e beleza, beleza e morte, agonia e superioridade, caminhos para o espírito, deslocações dos sentidos e visões banais. E nós sabemos, como sabiam Brodsky, Mann, Visconti, Mahler e Von Aschenbach, que tudo isso anda ligado. No Inverno e na Primavera. É preciso é olhar de novo.

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janeiro 22, 2007

Don`t Look Now

Venezia, Dez. 2006 (Photo by RC)

Tudo é para ser visto e para olhar, «pois as nossas outras faculdades limitam-se a tocar um débil segundo violino» (Watermark, de Joseph Brodsky; Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993). Mas é também tudo para desviar os olhos, pará-los, e não olhar agora. Não filmem, é demasiado belo, disse Andrej Tarkovszkyj durante as filmagens de O Sacrifício, quando o nevoeiro levantou na ilha de Gotland, no Báltico. É quase o mesmo que dizer Don`t Look Now: o que nos rodeia é demasiado forte para ser visto e por vezes não ver ou não querer ver é também ver, parar, reter o que se vê, mais ainda quando se trata da fina película do Inverno. Don`t Look Now é também o título de um filme, baseado numa short story de Daphne du Maurier, realizado em 1973 por Nicolas Roeg, uma co-produção do Reino Unido e da Itália, protagonizado por Julie Christie e Donald Sutherland, conhecido entre nós como Aquele Inverno em Veneza. Nele, Julie Christie e Donald Sutherland são, respectivamente, Laura e John Baxter, um casal inglês que viaja para Veneza, no Inverno, após a morte trágica da sua filha, na tentativa de salvar o casamento. Entretanto, enquanto John trabalha na restauração de uma igreja, Laura conhece duas estranhas irmãs, uma das quais afirma que a filha de ambos tem tentado entrar em contacto com eles através dos poderes mediúnicos dela. John, então, julga ver a sua filha a percorrer as ruas estreitas da cidade quando se depara inadvertidamente, por razões que desconhece, com um vulto vermelho a fugir-lhe. Depois, à medida que a história avança, somos levados numa terrível viagem ao subconsciente, por uma Veneza vazia, gélida, febril e perturbante. Todo o filme é atravessado por uma sensação de mau estar crescente, um desconforto psíquico, uma angustiante mistura de sons de vidros partidos e gritos estritendes com movimentos bruscos de câmara pelos locais obscuros de uma cidade de águas pardas, salas vazias, hotéis fechados ou desmantelados e campi subitamente desertos. Uma sensação de perigo eminente adensa-se; um mal instala-se, hipnótico, e é até físicamente que o sentimos, como se fôssemos proibidos de olhar: Don`t Look Now . O enredo desintegra-se, parece conduzir-nos numa espécie de ensaio através do que não sabemos explicar e que não está à frente dos nossos olhos. As cenas do acidente de Sutherland no andaime da igreja e do cortejo fúnebre com Julie Christie e as duas irmãs através do Grand Canal, são indicadoras de um desastre próximo, que nos incomoda e nos está sempre a incomodar, mesmo que não o percebamos, logo desde o princípio do filme, com o inesperado afogamento da filha dos Baxter, brilhantemente captado e conseguido. O ending da história é ainda, mais de três décadas depois, um dos mais enigmáticos e arrepiantes de sempre. E em pano de fundo, Veneza aparece deslocada no tempo, suspensa no Inverno, sobrenatural. Mas é também uma cidade bela, como só no Inverno o pode ser, quando as vozes e os passos desaparecem gradualmente pelos canali para se misturarem na nebia que se encosta, como em Watermark, aos poços e fachadas de mármore e tijolo dos campi. Contudo, é patente um mal constante e físico que se impõe, o que só a espaços, e esforçadamente, antevemos no livro de Brodsky, no qual também vogamos livres, ao passo que há um lado nocturno, pesado e assustador no filme de Roeg (e na story de Daphne du Maurier), como se Veneza, presa a uma série de acontecimentos e motivos, evocações e elipses, visíveis e invisíveis, pressagiasse, dentro de si, algo de invulgar, de terrífico; como se estivesse doente, e isso, de permeio com a sua beleza eminente, nos fizesse olhá-la de outra forma, suspender o olhar, não olhar, desviar os olhos, e não olhar agora; Don´T Look Now, como em Tarkovszkyj. O mesmo sucede numa outra obra, ou melhor, em duas outras obras-primas (Brodsky não concordaria) do século XX, uma da literatura, outra do cinema: Death in Venice, escrita em 1912 por Thomas Mann, adaptada ao cinema, com o mesmo nome, em 1971, por Luchino Visconti (com Dirk Bogarde, irrepreensível, a fazer de Gustav von Aschenbach e o imortal Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler, afinal a terceira obra-prima, como se literatura, cinema e música se fundissem num único momento magistral). Também aqui há algo moribundo e que impesta as águas paradas da laguna. Com uma leve diferença, todavia: em Brodsky e Don`t Look Now estamos no Inverno, acostados aos reflexos nos pallazzi e aos vultos fugazes, ameaçadores; em Death in Venice, de Mann e Visconti, o que assola Veneza é-nos dado através da lenta evocação da época balnear passada no Lido, quando o scirocco invade o Adriático. Mas isso são outras belezas ou outra busca da beleza, ou outros olhares, ou não olhares.

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janeiro 18, 2007

Olhar Agora

Venezia, Dez. 2006 (photo by RC)

Joseph Brodsky regressou repetidamente a Veneza durante 17 anos, sempre no Inverno. Evitou o Verão: não se dava com o calor nem com as arritmias de gente; além disso era - como refere - do Norte (do Báltico, da Rússia), o que de certa forma entronca com a estação abstracta, porque no Inverno é tudo mais cru. Mas também era uma questão de aparência física, de indumentária, mais consonante com a escolha da beleza e as cores pardas e austeras da laguna. «Nesta cidade os corpos, mesmo os mais bem dotados, devem a meu ver andar cobertos de tecido, quanto mais não seja porque se movem»; é que «a beleza circundante é tal que sentimos logo um incoerente desejo animal de a imitar, de estar à sua altura. Isto nada tem a ver com a vaidade, nem como o natural excesso de espelhos que aqui encontramos, sendo o príncipal a própria água. Acontece simplesmente que a cidade oferece aos bípedes uma noção de superioridade visual inexistente nas suas tocas naturais, nos seus poisos costumeiros. É por isso que aqui as peles voam, como voam a camurça, a seda, o linho, a lã e qualquer outro tipo de tecidos». É ainda guiados pelo Watermark, de 1992 (Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993), que seguimos através das fachadas, do mármore e do tijolo recônditos, das janelas góticas ou mouriscas, dos nichos tornados mais fundos, dos canali interiores, quase presos numa noite assustadora, dos querubins e dos anjos nas paredes, das estátuas em Campo dei Mori, dos reflexos na água espessa, castanha, que inunda as escadarias baixas dos palazzi, numa «imagem a preto e branco, como convém ao que brota da literatura, ou do Inverno; aristocrática, escura, fria, mal iluminada, com acordes de Vivaldi e Cherubini por pano de fundo, e por nuvens de corpos femininos drapejados à maneira de Bellini/Tiepolo/Ticiano». De manhã, a luz assenta numa espécie de vibração conjunta de todos os sinos que tocam para lá do céu que não se vê, porque, por momentos, Veneza desaparece, visualmente, para ser substituída pelo eco dos campanários que cruzam San Marco e o Campo de San Polo, como se vibrasse «um gigantesco serviço de chá de porcelana, sobre uma bandeja de prata». E ao fim da tarde «segreda-nos a luz de Inverno, detida no seu curso pela parede de tijolo de um hospital ou chegando ao destino, o paraíso do frontone de San Zaccaria, depois da sua longa travessia através do cosmos. (...) Esta é a luz de Inverno no auge da sua pureza. (...) A única ambição das suas partículas é alcançar um objecto e, grande ou pequeno, torná-lo visível. É uma luz íntima, a luz de Giorgione ou Bellini, e não a de Tiepolo ou Tintoretto. E a cidade demora-se nela, saboreando o seu afago, a carícia do infinito de onde veio a luz.» No Inverno, Veneza acalmava por momentos os nervos de Joseph Brodsky, do mesmo modo que a luz (a sua luz) e o nevoeiro absorviam o perfil das colunatas e dos pátios. Num recanto determinado do Cannaregio, onde também andou Corto Maltese, o panorama que a partir da Ponte de la Saca se avista para a parte norte da laguna levou-o a afirmar estarmos aí diante da mais perfeita aguarela do mundo. A ilha cemitério de San Michele fica mesmo em frente, no quadrante Este. Ocupa praticamente todo o quadro. Para quem, como muitos, desejava morrer em Veneza, não de causas naturais, mas por vontade, num quarto de um palazzo, virado ao Grand Canal, e escrever, antes de comprar um Browning, algumas «elegias apagando cigarros nas lajes húmidas do chão» até se percebe. Mas Brodsky não veio a morrer em Veneza, mas em Nova York, com 56 anos, de ataque de coração, em 28 de Janeiro. Todavia, e como quis, encontra-se sepultado em San Michele, no distrito dos mortos da cidade que amou, atrás dos muros de tijolo que sempre o impressionaram, a pouca distância de outro distrito veneziano, o Cannaregio, ali entre esses secretos locais de Veneza, esses que se tornam mais belos quando chega o Inverno, num «tempo para nos esquecermos de nós próprios».

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janeiro 17, 2007

Partir da Rua dos Douradores ...

Partir da Rua dos Douradores, com Bernardo Soares, não será a forma mais fácil. A Rua é a verdade de si mesma, criada por nós, pela imaginação sensível de nós próprios. Por isso, não há outra realidade exterior à nossa e o que existe é aquilo que projectamos, porque apenas existe em nós. Desta forma, a experiência deve ser realizada em desfavor do contacto com as coisas, e com os factos, e em favor das latências de cada um e das suas proximidades. Aí assenta o conhecimento. A nossa erudição está em nós; não fora de nós. O que somos é o ponto de partida e chegada do que existe. E existe na medida em que o filtramos das realidades exteriores. É ainda uma questão de composição. E aqui entravamos em Joseph Brodsky, quando (no Watermark, cuja edição italiana, da Adelphi, tem o sugestivo título de Fondamenta degli Incurabili - Cais dos Incuráveis - o que é, já de si, além de um local concreto, uma evocação), a certo passo, pouco depois de desembarcar, em Veneza, na Estação de Santa Lucia, numa noite de Inverno (como é sempre a Veneza de Brodsky), nos revela: «Um cheiro é, afinal de contas, uma violação do equilíbrio do oxigénio, invadido por outros elementos - metano? carbono? enxofre? azoto? Consoante a intensidade da invasão, temos um aroma, um cheiro, um fedor. É uma questão de moléculas, e a felicidade será, julgo eu, o momento em que captamos, vogando livres, os elementos da nossa própria composição». Mas há, no entanto, aparentemente, em Brodsky, uma válvula de escape, o que não sucede, também aparentemente, com o ajudante de guarda-livros Bernardo Soares: o momento em que captamos (o aroma a algas geladas do Grand Canal), vogando livres ...

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janeiro 16, 2007

Passagem Estreita

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