abril 22, 2008

Goa: Never Never Land

Os adolescentes encontram sempre satisfação porque Goa é a terra "never, never land", esse país para onde Peter Pan leva as crianças perdidas. Nesta terra de nenhures, diz-nos James Barrie, a única lei é nunca dizer "mamã" e andar à roda uns atrás dos outros no mesmo sentido, sem nunca nos apanharmos. Existe em todas as sociedades humanas um país do nunca-nunca, um sítio sem temporalidade e sem lei simbólica. Assim, para o ocidental, Goa representa esse lugar, um país fora do tempo, onde centenas de Peter Pan locais dançam e andam à roda. Se os rapazes se vestem como Peter Pan (calças justas e chapéu de Manali) e "voam" graças às suas motas Emphield, as raparigas parecem a fada Sininho, com as suas roupas transparentes e o chocalhar das braceletes indianas. E tal como Peter Pan, recusam-se a crescer. Na história, Peter Pan de facto voou pela janela pouco tempo depois do seu nascimento porque a mãe não o tinha pesado: ele não tinha, portanto, peso, tradução simbólica do narcisismo primário. Quando regressa algum tempo mais tarde, a janela está fechada e uma outr criança tomou o seu lugar. Ele decide então nunca mais crescer.
Ainda há alguns anos, a maior parte dos viajantes chegava a Mumbai e, daí, apanhava o meio de transporte mais económico para chegar a Panjim, a capital: o barco, que acentuava o aspecto de ilha de Goa. Levavam cerca de vinte e quatro horas a percorrer os seiscentos quilómetros que separam as duas cidades. A viagem lembrava um mini-cruzeiro, numa atmosfera de feira onde cada um lutava para ter um pouco de ponte. À partida pagava-se a um carregador que, vestido de vermelho, uma placa de cobre no peito, se batia para manter, espalhando panos no chão, um território que defendíamos depois sózinhos até à chegada. Esta "passagem" fazia a transição, que amortecia o choque cultural à chegada dos jovens ocidentais.
(...) Na maior parte dos casos era preciso esperar que os flip out (pacientes delirantes cobertos de infecções, emagrecidos por semanas ou mesmo meses de errância até que turistas quisessem tomar conta deles), como lhes chamava, chegassem a Goa, onde geralmente naufragavam depois do seu périplo pelo resto da Índia, às vezes enviados por indianos para que membros da sua "casta" se ocupassem deles. Passavem despercebidos, ao princípio, dado o costume local que faz da excentricidade uma maneira de estar no mundo, e a extrema tolerância (ou indiferença) dos indianos a seu respeito. Eles erravam, assim, alucinados, pelas praias, e faziam parte, ao fim de algum tempo, do teatro permanente que formava o desfile de ocidentais mascarados de flibusteiros, faquires, sultões, etc. A maior parte das perturbações psiquiátricas nos ocidentais pareciam no fim da época turística, por volta de Abril-Maio. Um provérbio local diz que nessa altura "os flipados caem como mangas", porque é a época (asfixiante, de pré-monção) em que se apanha este fruto.

(excertos de Fous de L`Inde, Délires d`Occidentaux et sentiment océanique; Régis Airault; Trad. de Ana Isabel Mineiro; Edições Via Óptima; Porto,2006) Passagem: Goa

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abril 04, 2008

Goa Trance House

(...) Goa está situada seiscentos quilómetros a sul de Mumbai. É uma etapa obrigatória para os turistas que visitam a Índia do Sul. É igualmente a base, durante a estação boa, de Novembro a Maio, de uma importante colónia ocidental que os indianos continuam a chamar "hippies", desde a sua aparição nos anos 60. Escolheram este lugar porque Goa yem tudo do paraíso terrestre. É desde há alguns anos o destino de charters que despejam vagas de turistas que só ficam uma semana e vêm "consumir" as praias de areia fina bordadas de coqueiros. Igualmente o fenómeno das raves, essas grandes festas techno, popularizou-se, e muitos jovens adeptos do Goa trance vêm só para participar nelas. O "espírito" de Goa desnaturou-se depois da chegada deste turismo de massas, enquanto que anos de passagem de viajantes independentes (que ficavam por vários meses) não tinhma mudado em profundidade a estrutura social da sua população.

A chegada dos hippies coincidiu com a descolonização deste pequeno enclave português: com efeito, a Índia retomo-o pela força em 1961. (...) Assim, quando os primeiros hippies chegaram a Goa, ficaram surpreendidos por encontrar indianos com nomes evocadores como Rosário ou Miranda. Falavam uma mistura de português e concanim, o dialecto local, num cenário de igrejas com ar de Lego. Nesta região rica e não sobrepovoada podiam facilmente comunicar com uma população mais próxima da sua cultura. Podiam mesmo partilhar uma comida europeizada. Reencontravam assim alguns pontos de referência e uma forma de coabitação impossível em qualquer outro lugar da Índia. É preciso adicionar a isso uma tolerância surpreendente dos habitantes e um estatuto económico particular de porto franco com as suas consequências, em particular o contrabando.

Com efeito, Goa é o paraíso como o imaginamos na Europa. Está acessível aos mais desprovidos, já que podemos contruir cabanas nas praias se não tivermos com que pagar uma dessas casas coloniais com cortinas de conchas, perdidas no meio das buganvílias, coqueiros e cajueiros. Alugam-se por algumas centenas de francos por mês aos Ocidentais que as reservam de uma estação para outra. Os mais jovens agrupam-se e criam assim verdadeiras "casas de adolescentes". Dois acontecimentos principais ritmam a vida dos Ocidentais em Goa, a feira das quinquilharias e as raves. Verdadeiras bacanais, começam tarde na noite e duram até ao meio-dia do dia seguinte. O Flea Market tem lugar uma vez por semana na praia de Anjuna e dura todo o dia. É um momento de encontros e de trocas de informação, em particular para saber onde e quando terá lugar a próxima festa. Outros lugares "mágicos" sofreram investidas em certos períodos: as ruínas de Hampi, a trezentos quilómetros dali, as prias de Kerala (Trivandrum), o Rajastão (Pushkar) e, mais recentemente, Gokarn, no Karnataka. Serviram de base de encontros aos Ocidentais que viajavam, mas em nenhuma parte foi tolerada durante tanto tempo a sua sedentarização. O único lugar equivalente onde "colónias" de Ocidentais puderam instalar-se encontra-se a Norte de Deli, na região de Kulu e Manali, onde os europeus contribuíram para desenvolver a cultura intensiva de cannabis. Na altura da monção, ainda há alguns anos, centenas de Ocidentais deixavam Goa para ocupar os seus quartéis de Verão nestes vales temperados. Ficavam assim muitos anos na Índia, vivendo de comércios mais ou menos legais, migrando ao sabor das estações. No entanto, a nova legislação indiana sobre os vistos fez desaparecer este modo de vida: só alguns irredutíveis arriscam passar vários meses na prisão e pagar multas importantes para ficar a tempo inteiro na Índia. Mesmo se as coisas mudaram, Goa é sempre Goa e atrai mais do que nunca os viajantes de todo o mundo. Já não é o caminho depois de semanas de aventuras, mas um lugar onde se chega em charters. Se os junkies se vão tornando raros, as raves gratuitas regadas a LSD, ecstasy e haxixe continuam cada vez mais fortes. Ainda há "flipados", mas poucos, comparado com os anos 70. (...) Não esqueçamos que o deus Xiva - deus da destruição e, logo, da reconstrução - adquiriu, graças à sua experiência de drogas, um conhecimento da "realidade suprema". Os sadus, os homens santos da Índia, inspiraram o modo de vida dos primeiros hippies, que reconheciam neles pioneiros do que pregavam: o caminho e os despojamento. Este movimento romântico encontrava assim na Índia um eco das suas ideias, e um terreno propício à experiência psicadélica.

(excertos de Fous de L`Inde, Délires d`Occidentaux et sentiment océanique; Régis Airault; Trad. de Ana Isabel Mineiro; Edições Via Óptima; Porto,2006)

Passagem: Goa

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