agosto 31, 2007

Moleskine (4)

A ética pastoral na Irlanda antiga:
«Desde que peguei na minha lança, não se passa um dia sem que eu mate um homem da família dos Connaught».
Connal Cernach, um criador de gado de Ulster
(by Bruce Chatwin, in O Canto Nómada (The Songlines), Quetzal, 1995)
Passagem: Connaught; Ashford Castle

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agosto 27, 2007

Moleskine (3)

A Ilha do Além
«Para os povos navegadores existem sempre ilhas para lá do horizonte. Ilhas onde dizem esconder-se a felicidade. São ilhas dos bem-aventurados, plenas de harmonia sob a égide de Apolo, de que fala Hesíodo aos gregos desde o século VIII a.C. A ilha representa neste caso a promessa da salvação. Na mitologia celta os druidas iam a Inglaterra à procura do aperfeiçoamento da sua doutrina (recordai-vos de Panoramix que se desloca a uma conferência de druidas no album Asterix e os Godos), mas também na busca de uma espécie de mundos paralelos - como conta, por exemplo, Yeats, em The Celtic Twilight, publicado em 1893 -, onde se celebra a festa de Samain, a 1 de Novembro, o Ano Novo dos druidas, dias em que os mundos dos vivos e dos mortos entravam em comunicação. A ilha suscita, portanto, uma dimensão mística. É por essa razão que, na lenda do Graal, a busca do cálice sagrado deve levar à ilha de Monsalvat, a ocidente dos mares, onde o curso do tempo está suspenso. O Graal, cálice da Última Ceia onde foi recolhido o sangue de Cristo, surge a partir do século XII, mas numerosos contos celtas anteriores a essa data falam de um vaso mágico contendo o néctar da vida eterna, escondido numa ilha. Outra ilha, terra matriz de toda a potência, como em certos textos gauleses nos quais Cena, a ilha de Sein, era habitada por sacerdotisas dotadas de espantosos poderes de previsão. E se o Éden era um jardim, a tradição muçulmana vê o paraíso terrestre numa ilha.» (texto de Cleménce Boulouque; Lire; Junho 2004; Trad. de João carlos Barradas)

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agosto 23, 2007

Veneza: Adeus com Brodsky e Mann

Há muitas formas de abordar Veneza, de chegar. Por caminho de ferro, em Venezia-Mestre ou Santa Lucia, de barco, em mar alto, no Adriático, através da linha nº 1 ou nº 82 do vaporetto, passar em Cà d`Oro, San Zaccaria, Accademia, chegar pelo Lido, ir no Invervo, na Primavera, ir de casaco de pele, gorro e botas altas de camurça, ou em calças de linho azul, dobradas em baixo, e chapéu de palha, com um fita, descer as escadarias da estação, à noite, com a boquilha ou o charuto na boca, cheirar as algas geladas do Canal Grande ou dar uma olhadela para a direita, para as águas negras, onde começa o infinito, ver os primeiros reflexos, de nós mesmos, ou as estrias dos pallazzi, e adivinhar os caminhos por aí adentro, por uma cidade secreta, que conta histórias ocultas, que as sombras dos pátios e as ruas do Cannaregio suspendem nos dias quentes de Setembro, junto às três estátuas Dei Mori.
Mas também há muitas maneiras de deixar Veneza. Partir por momentos, por vinte anos, ou para sempre, partir com os olhos cheios de lágrimas, imitando Mahler, partir simplesmente, depois de beber um bellini, subir o Canal até Santa Lucia ou sair directamente da Isola di San Clemente, através da laguna pastosa e lisa à hora em que o sol parece um aviso de um fim ou um grande vitral ou mosaico de San Marco. Mas, entre todas as possíveis vamos agora partir de duas formas, em dois momentos distintos, um mais feliz, escorreito e felino, outro mais mortal e físico, quase barroco, um deles num soalheiro dia de Inverno, com Joseph Brodsky, em Watermark, outro com Thomas Mann em Der Tod in Venedig, quando o sciroco toma conta das vontades e amolece os visitantes, extasiados com Tintoretto, nas escadas das igrejas dos campi:

Joseph Brodsky

«Convenci-me há muito da virtude que é não nos consumirmos na vida das nossas emoções. Há sempre trabalho bastante para nos entreter, não falando já no vasto mundo lá fora. Em última análise, há sempre esta cidade. Enquanto ela existir, não creio que eu, ou seja quem for, possa deixar-se hipnotizar ou ofuscar por tragédias românticas. Lembro-me de um dia - o dia em que me preparava para partir, ao fim de um mês aqui passado sozinho. Acabava de almoçar numa pequena trattoria, no extremo mais distante das Fondamente Nuove, peixe grelhado e meia garrrafa de vinho. Com essa refeição no papo, dirigi-me para o sítio onde ficara alojado, para ir buscar as malas e apanhar um vaporetto. Caminhei um quarto de milha ao longo dos Fondamente Nuove, um pequeno ponto móvel nessa gigantesca aquarela, e depois virei à direita, no hospital de Giovanni e Paolo. Estava um dia quente, soalheiro, o céu azul, um perfeito encanto. E, de costas para as Fondamente e para San Michele, rente ao muro do hospital, quase a aflorá-lo com o ombro esquerdo e dando a cara ao sol, de olhos semicerrados, sento de repente: sou um gato. Um gato que ainda agora comeu peixe. Se algúem me tivesse dirigido a palavra nesse instante, eu teria respondido com um miado. Foi uma felicidade animal, absoluta» (Watermark. Marca de Água; Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993).

Thomas Mann

«A atmosfera da cidade, aquele odor levemente choco de charco e mar, que com tanta urgência o impelira de fugir, inspirava-o agora em fôlegos profundos, enternecidos, dolorosos. Seria possível que tivesse ignorado, que tivesse descurado quanto o seu coração estava apegado a tudo aquilo? O que de manhã fora meio lamento, vaga dúvida quanto à justeza da sua atitude, transformava-se agora em pesar, em verdadeiro sofrimento, em angústia tão amarga, que várias vezes lhe fez aflorar as lágrimas aos olhos e que nunca teria imaginado possível. O que mais lhe custava e que, por momentos, lhe parecia mesmo insuportável era manifestamente a ideia de que não voltaria a ver Veneza, de que aquilo era um adeus para sempre» (Der Tod in Venedig. Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978).

Passagem: Venezia

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agosto 19, 2007

Veneza: Beleza e Morte

Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) in Der Tod in Venedig
Joseph Brodsky deixa expressamente entender no seu Watermark não ter nutrido grande simpatia por Der Tod in Venedig (Death in Venice; Morte em Veneza), de Thomas Mann, bem como pelo filme de Luchino Visconti, de 1971, com Dirk Bogarde no papel de Gustav von Aschenbach e a música da 5ª Sinfonia de Mahler. Mas Brodsky acaba por ceder quando escreve (Watermark; Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993): «Mesmo assim, a longa sequência inicial, com o Sr. Bogarde numa cadeira de repouso, a bordo de um navio, fez-me esquecer os méritos ou deméritos da obra e lamentar não sofrer de uma doença mortal; ainda hoje sou capaz de reviver esse sentimento». Mas de uma ou outra maneira, partilhemos ou não a opinião de Brodsky, a obra de Mann é um prodígio do século passado (1912) e a sua adaptação por Visconti um dos mais belos filmes da história do cinema.

Luchino Visconti

Não vou fazer qualquer abordagem específica a Der Tod in Venedig nem ao filme de Visconti porque não é o lugar, nem tão pouco me considero habilitado. E todos sabemos de antemão qual é a história e do que se trata. E do que se trata é da busca da beleza, do belo, seja qual for e como nos apareça. Mesmo que Mann a entenda numa perspectiva mais platónica, como uma forma, como algo em em si e por si, e que devemos procurar abertos a todas as possibilidades («Pois a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é - nota bem! - a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos (...) e por isso ela é também caminho do artista para o espírito»; citamos Der Tod in Venedig; Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978). Ou Brodsky considere, ainda em Watermark, que «a beleza não pode ser tomada como um alvo, que ela é sempre um subproduto de outras demandas, muitas vezes banalíssimas». Seja como for, em Veneza, no Inverno, «os leões alumiam os nossos crepúsculos» (Watermark) e na Primavera, e com o início da época balnear, «sob um céu pálido e toldado, quando mar jaz, parado e mortiço (...), limitado ao largo por um horizonte insípido que parecia próximo e tão recuado da praia que deixava a descoberto faixas sucessivas de longos bancos de areia», julgamos «cheirar no ar o odor fétido da laguna» (Der Tod in Venedig; Morte em Veneza, continuamos com a tradução de Sara Seruya para a edição da Europa-América).

Aqui, no livro de Mann deixámos definitivamente o Inverno para sentir os avanços da estiagem. E o perigo, a vaga impressão na atmosfera e nas ruas e canalli de uma cidade tolhida por um calor espesso e pelo sciroco angustia tremendamente Gustav Von Aschenbach, que nisso pressente uma ameaça, um fim próximo, «uma desfiguração estranha do mundo». O mal, a doença subreptícia, que tínhamos entrevisto em Don`t Look Now, de Roeg (mas no Inverno), adensa-se lentamente e de outra forma à medida que Von Aschenbach prolonga a sua estadia em Veneza e acentua o êxtase pelo jovem aristocrata polaco Tadzio, a personificação do belo. No filme de Visconti, o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler faz pender a balança ainda mais para o lado da incerteza, do torpor e de uma mágoa e fôlego insuportáveis.

Gustav Mahler

Von Aschenbach, que no livro de Thomas Mann é um escritor, é na obra de Luchino Visconti um músico - há aqui uma aparente e parcial contradição, pois parece que Mann se inspirou para escrever o seu livro quando viu o compositor Gustav Mahler, caído em lágrimas (seria da perfeição, da distribuição da luz?), na estação de Santa Lucia, a deixar Veneza; fez, contudo, que o protagonista da história fosse músico, mas deu-lhe o nome de Gustav, como primeiro nome; Visconti pegou no nome de Mann mas fez de Aschenbach músico, esse criador da mais incorpórea das artes, e rematou a sua obra com a música imortal do verdadeiro Gustav, o Mahler -, um músico que no seu quinquagésimo aniversário deixa Munique, por uma súbita sensação de «vertigem de fuga e(...) avidez de libertação», e parte para o Sul, para Veneza, onde decide abordar a cidade da única maneira que ela deve ser abordada, a única que faz sentido, a mais perfeita: por barco, em mar alto. É aqui que entroncamos na tal longa sequência inicial, do filme de Visconti, com o Sr. Bogarde, na cadeira de repouso, de que Brodsky fala. A música acentua o carácter melancólico da navegação do vaporetto, com Von Aschenbach, de olhar parado, sofrido, doentio, a ver a aproximação de San Marco. É um momento único em todos os sentidos. Um momento magistral do cinema, que o livro de Mann também prodigiosamente insinua, faz ver, pelo suporte da literatura.

Gustav Von Aschenbach, uma vez no cais de San Marco, pedirá a um gondolieri que o leve, mais a bagagem, à ilha do Lido. Mas logo ali, antes de embarcar, «tudo aquilo lhe aparecia como prenúncio de algo de invulgar, dir-se-ia que começava a envolvê-lo um alheamento próximo do sonho» (continuamos a citar Morte em Veneza, da Europa-América), como se Veneza já estivesse contaminada por algo imperceptível, que pouco a pouco, durante a temporada estival de Aschebach no Hotel des Bains, no Lido, se iria instaurar e pegar-se, tal uma ferida, com os cheiros da laguna e o sciroco, numa mistura real e impossível de dor e beleza, beleza e morte, agonia e superioridade, caminhos para o espírito, deslocações dos sentidos e visões banais. E nós sabemos, como sabiam Brodsky, Mann, Visconti, Mahler e Von Aschenbach, que tudo isso anda ligado. No Inverno e na Primavera. É preciso é olhar de novo.

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agosto 14, 2007

Veneza: Aquele Inverno

Venezia, Cannaregio, Jan.2007 (Photo by RC)
Tudo é para ser visto e para olhar, «pois as nossas outras faculdades limitam-se a tocar um débil segundo violino» (Watermark, de Joseph Brodsky; Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993). Mas é também tudo para desviar os olhos, pará-los, e não olhar agora. Não filmem, é demasiado belo, disse Andrej Tarkovszkyj durante as filmagens de O Sacrifício, quando o nevoeiro levantou na ilha de Gotland, no Báltico. É quase o mesmo que dizer Don`t Look Now: o que nos rodeia é demasiado forte para ser visto e por vezes não ver ou não querer ver é também ver, parar, reter o que se vê, mais ainda quando se trata da fina película do Inverno.

Don`t Look Now é também o título de um filme, baseado numa short story de Daphne du Maurier, realizado em 1973 por Nicolas Roeg (co-produção do Reino Unido e da Itália), protagonizado por Julie Christie e Donald Sutherland (entre nós conhecido como Aquele Inverno em Veneza). Nele, Julie Christie e Donald Sutherland são, respectivamente, Laura e John Baxter, um casal inglês que viaja para Veneza, no Inverno, na tentativa de salvar o casamento, após a morte trágica da filha. Entretanto, enquanto John trabalha na restauração de uma igreja, Laura conhece duas estranhas irmãs, uma das quais afirma que a filha de ambos tem tentado entrar em contacto com eles através dos seus poderes mediúnicos. John, então, julga ver a sua filha a percorrer as ruas estreitas da cidade quando se depara inadvertidamente, por razões que desconhece, com um vulto vermelho a fugir-lhe. Depois, à medida que a história avança, somos levados numa terrível viagem ao subconsciente, por uma Veneza vazia, gélida, febril e perturbante. Todo o filme é atravessado por uma sensação de mau estar crescente, um desconforto psíquico, uma angustiante mistura de sons de vidros partidos e gritos estritendes com movimentos bruscos de câmara pelos locais obscuros de uma cidade de águas pardas, salas vazias, hotéis fechados ou desmantelados e campi subitamente desertos. Uma sensação de perigo eminente adensa-se; um mal instala-se, hipnótico (e é até físicamente que o sentimos), como se fôssemos proibidos de olhar: Don`t Look Now .

O enredo desintegra-se, parece conduzir-nos numa espécie de ensaio através do que não sabemos explicar e que não está à frente dos nossos olhos. As cenas do acidente de Sutherland no andaime da igreja e do cortejo fúnebre com Julie Christie e as duas irmãs através do Grande Canal, são indicadoras de um desastre próximo, que nos incomoda e nos está sempre a incomodar, mesmo que não o percebamos, logo desde o princípio do filme, com o inesperado afogamento da filha dos Baxter. O ending da história é ainda, mais de três décadas depois, um dos mais enigmáticos e arrepiantes de sempre.

E em pano de fundo, Veneza aparece deslocada no tempo, suspensa no Inverno, sobrenatural. Mas é também uma cidade bela, como só no Inverno o pode ser, quando as vozes e os passos desaparecem gradualmente pelos canali para se misturarem na nebia que se encosta, como em Watermark, aos poços e fachadas de mármore e tijolo dos campi. Contudo, é patente um mal constante e físico que se impõe, o que só a espaços, e esforçadamente, antevemos no livro de Brodsky, ao passo que há um lado nocturno, pesado e assustador no filme de Roeg (e na story de Daphne du Maurier), como se Veneza, presa a uma série de acontecimentos e motivos, evocações e elipses, visíveis e invisíveis, pressagiasse, dentro de si, algo de invulgar e de terrífico; como se estivesse doente, e isso, de permeio com a sua beleza eminente, nos fizesse olhá-la de outra forma, suspender o olhar, não olhar, desviar os olhos, e não olhar agora; Don´T Look Now, como em Tarkovszkyj.

O mesmo sucede numa outra obra, ou melhor, em duas outras obras-primas (Brodsky não concordaria) do século XX, uma da literatura, outra do cinema: Death in Venice, escrita em 1912 por Thomas Mann, adaptada ao cinema, com o mesmo nome, em 1971, por Luchino Visconti (com Dirk Bogarde, irrepreensível, a fazer de Gustav von Aschenbach e o imortal Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler, afinal a terceira obra-prima, como se literatura, cinema e música se fundissem num único momento magistral). Também aqui há algo moribundo e que impesta as águas paradas da laguna. Com uma leve diferença, todavia: em Brodsky e Don`t Look Now estamos no Inverno, acostados aos reflexos nos pallazzi e aos vultos fugazes, ameaçadores; em Death in Venice, de Mann e Visconti, o que assola Veneza é-nos dado através da lenta evocação da época balnear passada no Lido, quando o scirocco invade o Adriático. Mas isso são outras belezas ou outra busca da beleza, ou outros olhares, ou não olhares.

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agosto 10, 2007

Veneza: Luz de Inverno, de Brodsky e de Bellini

Veneza; a Laguna vista da Isola de San Clemente; Dez.2006 (photo by RC)
Joseph Brodsky regressou repetidamente a Veneza durante 17 anos, sempre no Inverno. Evitou o Verão: não se dava com o calor nem com as arritmias de gente; além disso era - como refere - do Norte (do Báltico, da Rússia), o que de certa forma entronca com a estação abstracta, porque no Inverno é tudo mais cru. Mas também era uma questão de aparência física, de indumentária, mais consonante com a escolha da beleza e as cores pardas e austeras da laguna. «Nesta cidade os corpos, mesmo os mais bem dotados, devem a meu ver andar cobertos de tecido, quanto mais não seja porque se movem»; é que «a beleza circundante é tal que sentimos logo um incoerente desejo animal de a imitar, de estar à sua altura. Isto nada tem a ver com a vaidade, nem como o natural excesso de espelhos que aqui encontramos, sendo o príncipal a própria água. Acontece simplesmente que a cidade oferece aos bípedes uma noção de superioridade visual inexistente nas suas tocas naturais, nos seus poisos costumeiros. É por isso que aqui as peles voam, como voam a camurça, a seda, o linho, a lã e qualquer outro tipo de tecidos».

É ainda guiados pelo Watermark, de 1992 (Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993), que seguimos através das fachadas, do mármore e do tijolo recônditos, das janelas góticas ou mouriscas, dos nichos tornados mais fundos, dos canali interiores, quase presos numa noite assustadora, dos querubins e dos anjos nas paredes, das estátuas em Campo dei Mori, dos reflexos na água espessa, castanha, que inunda as escadarias baixas dos palazzi, numa «imagem a preto e branco, como convém ao que brota da literatura, ou do Inverno; aristocrática, escura, fria, mal iluminada, com acordes de Vivaldi e Cherubini por pano de fundo, e por nuvens de corpos femininos drapejados à maneira de Bellini/Tiepolo/Ticiano». De manhã, a luz assenta numa espécie de vibração conjunta de todos os sinos que tocam para lá do céu que não se vê, porque, por momentos, Veneza desaparece, visualmente, para ser substituída pelo eco dos campanários que cruzam San Marco e o Campo de San Polo, como se vibrasse «um gigantesco serviço de chá de porcelana, sobre uma bandeja de prata». E ao fim da tarde «segreda-nos a luz de Inverno, detida no seu curso pela parede de tijolo de um hospital ou chegando ao destino, o paraíso do frontone de San Zaccaria, depois da sua longa travessia através do cosmos».

«(...) Esta é a luz de Inverno no auge da sua pureza. (...) A única ambição das suas partículas é alcançar um objecto e, grande ou pequeno, torná-lo visível. É uma luz íntima, a luz de Giorgione ou Bellini, e não a de Tiepolo ou Tintoretto. E a cidade demora-se nela, saboreando o seu afago, a carícia do infinito de onde veio a luz.» No Inverno, Veneza acalmava por momentos os nervos de Joseph Brodsky, do mesmo modo que a luz (a sua luz) e o nevoeiro absorviam o perfil das colunatas e dos pátios. Num recanto determinado do Cannaregio, onde também andou Corto Maltese, o panorama que a partir da Ponte de la Saca se avista para a parte norte da laguna levou-o a afirmar estarmos aí diante da mais perfeita aguarela do mundo. A ilha cemitério de San Michele fica mesmo em frente, no quadrante Este. Ocupa praticamente todo o quadro. Para quem, como muitos, desejava morrer em Veneza, não de causas naturais, mas por vontade, num quarto de um palazzo, virado ao Grande Canal, e escrever, antes de comprar um Browning, algumas «elegias apagando cigarros nas lajes húmidas do chão» até se percebe. Mas Brodsky não veio a morrer em Veneza, mas em Nova York, com 56 anos, de ataque de coração, em 28 de Janeiro. Todavia, e como quis, encontra-se sepultado em San Michele, no distrito dos mortos da cidade que amou, atrás dos muros de tijolo que sempre o impressionaram, a pouca distância de outro distrito veneziano, o Cannaregio, ali entre esses secretos locais de Veneza, esses que se tornam mais belos quando chega o Inverno, num «tempo para nos esquecermos de nós próprios».

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agosto 09, 2007

Moleskine (2)

Que faço eu aqui?
J.A.Rimbaud (Abissínia)

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agosto 05, 2007

Moleskine (1)

Inicia aqui uma série, fragmentária e descontínua, nem sempre sistemática e sucessiva, de apontamentos e impressões, imagens e notas, memórias e jornadas, a que se dá o apropriado nome de Moleskine.
«MOLESKINE IS THE LEGENDARY NOTEBOOK, USED BY EUROPEAN ARTISTS AND THINKERS FOR THE PAST TWO CENTURIES, FROM VAN GOGH TO PICASSO, FROM ERNEST HEMINGWAY TO BRUCE CHATWIN. This trusty, pocket-size travel companion held sketches,notes, stories and ideas before they were turned into famous images or pages of beloved books. Originally produced by small French bookbinders who supplied the Parisian stationery shops frequented by theinternational avant-garde, by the end of the twentieth century the Moleskine notebook was no longer available.In 1986, the last manufacturer of Moleskine, a family operation in Tours, closed its shutters forever. “Le vrai Moleskine n’est plus” were the lapidary words of the owner of the stationery shop in Rue de l’AncienneComédie where Chatwin stocked up on the notebooks. The English writer had ordered a hundred of them beforeleaving for Australia: he bought up all the Moleskine that he could find, but they were not enough. In 1998, a small Milanese publisher brought Moleskineback again. As the self-effacing keeper of an extraordinarytradition, Moleskine once again began to travel the globe.To capture reality on the move, pin down details, impress upon paper unique aspects of experience: Moleskineis a reservoir of ideas and feelings, a battery that stores discoveries and perceptions, and whose energy can be tapped over time.The legendary black notebook is once again being passed from one pocket to the next; with its various different pagestyles it accompanies the creative professions and the imagination of our time. The adventure of Moleskine continues, and its still-blank pages will tell the rest.»
"To lose a passport was the least of one's worries. To lose a notebook was a catastrophe."
Bruce Chatwin

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