agosto 23, 2007

Veneza: Adeus com Brodsky e Mann

Há muitas formas de abordar Veneza, de chegar. Por caminho de ferro, em Venezia-Mestre ou Santa Lucia, de barco, em mar alto, no Adriático, através da linha nº 1 ou nº 82 do vaporetto, passar em Cà d`Oro, San Zaccaria, Accademia, chegar pelo Lido, ir no Invervo, na Primavera, ir de casaco de pele, gorro e botas altas de camurça, ou em calças de linho azul, dobradas em baixo, e chapéu de palha, com um fita, descer as escadarias da estação, à noite, com a boquilha ou o charuto na boca, cheirar as algas geladas do Canal Grande ou dar uma olhadela para a direita, para as águas negras, onde começa o infinito, ver os primeiros reflexos, de nós mesmos, ou as estrias dos pallazzi, e adivinhar os caminhos por aí adentro, por uma cidade secreta, que conta histórias ocultas, que as sombras dos pátios e as ruas do Cannaregio suspendem nos dias quentes de Setembro, junto às três estátuas Dei Mori.
Mas também há muitas maneiras de deixar Veneza. Partir por momentos, por vinte anos, ou para sempre, partir com os olhos cheios de lágrimas, imitando Mahler, partir simplesmente, depois de beber um bellini, subir o Canal até Santa Lucia ou sair directamente da Isola di San Clemente, através da laguna pastosa e lisa à hora em que o sol parece um aviso de um fim ou um grande vitral ou mosaico de San Marco. Mas, entre todas as possíveis vamos agora partir de duas formas, em dois momentos distintos, um mais feliz, escorreito e felino, outro mais mortal e físico, quase barroco, um deles num soalheiro dia de Inverno, com Joseph Brodsky, em Watermark, outro com Thomas Mann em Der Tod in Venedig, quando o sciroco toma conta das vontades e amolece os visitantes, extasiados com Tintoretto, nas escadas das igrejas dos campi:

Joseph Brodsky

«Convenci-me há muito da virtude que é não nos consumirmos na vida das nossas emoções. Há sempre trabalho bastante para nos entreter, não falando já no vasto mundo lá fora. Em última análise, há sempre esta cidade. Enquanto ela existir, não creio que eu, ou seja quem for, possa deixar-se hipnotizar ou ofuscar por tragédias românticas. Lembro-me de um dia - o dia em que me preparava para partir, ao fim de um mês aqui passado sozinho. Acabava de almoçar numa pequena trattoria, no extremo mais distante das Fondamente Nuove, peixe grelhado e meia garrrafa de vinho. Com essa refeição no papo, dirigi-me para o sítio onde ficara alojado, para ir buscar as malas e apanhar um vaporetto. Caminhei um quarto de milha ao longo dos Fondamente Nuove, um pequeno ponto móvel nessa gigantesca aquarela, e depois virei à direita, no hospital de Giovanni e Paolo. Estava um dia quente, soalheiro, o céu azul, um perfeito encanto. E, de costas para as Fondamente e para San Michele, rente ao muro do hospital, quase a aflorá-lo com o ombro esquerdo e dando a cara ao sol, de olhos semicerrados, sento de repente: sou um gato. Um gato que ainda agora comeu peixe. Se algúem me tivesse dirigido a palavra nesse instante, eu teria respondido com um miado. Foi uma felicidade animal, absoluta» (Watermark. Marca de Água; Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993).

Thomas Mann

«A atmosfera da cidade, aquele odor levemente choco de charco e mar, que com tanta urgência o impelira de fugir, inspirava-o agora em fôlegos profundos, enternecidos, dolorosos. Seria possível que tivesse ignorado, que tivesse descurado quanto o seu coração estava apegado a tudo aquilo? O que de manhã fora meio lamento, vaga dúvida quanto à justeza da sua atitude, transformava-se agora em pesar, em verdadeiro sofrimento, em angústia tão amarga, que várias vezes lhe fez aflorar as lágrimas aos olhos e que nunca teria imaginado possível. O que mais lhe custava e que, por momentos, lhe parecia mesmo insuportável era manifestamente a ideia de que não voltaria a ver Veneza, de que aquilo era um adeus para sempre» (Der Tod in Venedig. Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978).

Passagem: Venezia

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