Veneza: Adeus com Brodsky e Mann
«Convenci-me há muito da virtude que é não nos consumirmos na vida das nossas emoções. Há sempre trabalho bastante para nos entreter, não falando já no vasto mundo lá fora. Em última análise, há sempre esta cidade. Enquanto ela existir, não creio que eu, ou seja quem for, possa deixar-se hipnotizar ou ofuscar por tragédias românticas. Lembro-me de um dia - o dia em que me preparava para partir, ao fim de um mês aqui passado sozinho. Acabava de almoçar numa pequena trattoria, no extremo mais distante das Fondamente Nuove, peixe grelhado e meia garrrafa de vinho. Com essa refeição no papo, dirigi-me para o sítio onde ficara alojado, para ir buscar as malas e apanhar um vaporetto. Caminhei um quarto de milha ao longo dos Fondamente Nuove, um pequeno ponto móvel nessa gigantesca aquarela, e depois virei à direita, no hospital de Giovanni e Paolo. Estava um dia quente, soalheiro, o céu azul, um perfeito encanto. E, de costas para as Fondamente e para San Michele, rente ao muro do hospital, quase a aflorá-lo com o ombro esquerdo e dando a cara ao sol, de olhos semicerrados, sento de repente: sou um gato. Um gato que ainda agora comeu peixe. Se algúem me tivesse dirigido a palavra nesse instante, eu teria respondido com um miado. Foi uma felicidade animal, absoluta» (Watermark. Marca de Água; Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993).
«A atmosfera da cidade, aquele odor levemente choco de charco e mar, que com tanta urgência o impelira de fugir, inspirava-o agora em fôlegos profundos, enternecidos, dolorosos. Seria possível que tivesse ignorado, que tivesse descurado quanto o seu coração estava apegado a tudo aquilo? O que de manhã fora meio lamento, vaga dúvida quanto à justeza da sua atitude, transformava-se agora em pesar, em verdadeiro sofrimento, em angústia tão amarga, que várias vezes lhe fez aflorar as lágrimas aos olhos e que nunca teria imaginado possível. O que mais lhe custava e que, por momentos, lhe parecia mesmo insuportável era manifestamente a ideia de que não voltaria a ver Veneza, de que aquilo era um adeus para sempre» (Der Tod in Venedig. Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978).
Etiquetas: Cinema: Death in Venice, Joseph Brodsky, Livros: Der Tod in Venedig, Livros: Watermark, Thomas Mann, Veneza
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