julho 19, 2007

Partir para Algures: Jean Arthur Rimbaud (3)

«O "estilo" da correspondência (de Rimbaud) caracteriza-se por não se caracterizar. Rimbaud não se dirige a companheiros de letras mas à família, a colegas de negócios, a jerarcas locais. Escreve ao correr da pena e da pressa, nos intervalos de partidas e chegadas. Procura, no entanto, entre desabafos da psique e relatos dos padecimentos físicos, fornecer apontamentos geográficos, climatéricos, antropológicos - o quanto basta para o enquadramento, junto dos destinatários, das situações em que se encontra. Ausente o "poeta" (de notar que em toda a correspondência não há a mínima alusão ao passado literário ou amoroso), é o homem de acção, com o seus projectos, sucessos poucos e desaires muitos, que ressalta. Instável, irascível, desamparado. Afinal, como O OUTRO!».

(texto de Vitor Silva Tavares in Cartas da Abissínia de Arthur Rimbaud seguido de Mar Vermelho de Philippe Soulpault; Trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares; Edições & etc; Lisboa 2000)

Cartas

Harar, 13 de Dezembro de 1880: Cheguei a este país depois de vinte dias a cavalo através do deserto somali. Harar é uma cidade colonizada pelos egípcios e dependente do governo deles. A guarnição é de vários milhares de homens. A nossa agência e os nossos armazéns estão aqui instalados. Os produtos comerciáveis são o café, o marfim, as peles, etc. O país é alto mas não árido. O clima fresco e não doentio. Todas as mercadorias são importadas da Europa e transportadas por camelos. Aliás, há muito a fazer nesta terra. Não temos aqui correio regular. Somos obrigados a enviar a correspondência para Aden, e só de tempos a tempos. Por conseguinte, só recebereis esta carta daqui a muito tempo. (...)

Harar, 25 de Maio de 1881: (...) Ai de mim! Não tenho apego nenhum à vida, e se vivo, é porque estou habituado a viver de fadigas; mas se for forçado a continuar a fatigar-me como até agora e a alimentar-me de mágoas tão veementes como absurdas nestes climas atrozes, temo abreviar a minha existência (...).

Harar, 6 de Maio de 1883: (...) A vida é assim, e a solidão é uma coisa má nestas paragens. Pelo que me diz respeito, lamento não ter casado e não ter família própria. Mas agora estou condenado à errância, ligado a uma empresa longínqua, e todos os dias perco o gosto pelo clima e pelas maneiras de viver, e mesmo pela língua da Europa. Helás! para que servem estas idas e vindas, estas fadigas e aventuras junto de raças estrangeiras, e estas línguas como que se atafulha a memória, e estes sofrimentos inomináveis, se um dia, após vários anos, não puder repousar num lugar que me agrade mais ou menos e ter uma família, a ter pelo menos um filho a quem passe o resto da vida a educar segundo as minhas ideias, a ilustrar e a dotar com a instrução mais completa que se pode adquirir nesta época, e que eu veja tornar-se num engenheiro de renome, um homem poderoso e rico através da ciência? Mas quem sabe quanto poderão durar os meus dias aqui nestas montanhas? E posso desaparecer no meio destas tribos, sem que a notícia alguma vez seja divulgada (...)

Aden, 5 de Maio de 1884: (...) Perdoem-me que vos conte em pormenor as minhas preocupações. É que vejo que estou a chegar aos trintas anos (metade da vida!) e que me cansei muito a correr mundo, sem resultado (...)

Aden, 10 de Setembro de 1884: (...) Sinto porém que estou a envelhecer muito depressa (...)

Aden, 18 de Novembro de 1885: Estou feliz por deixar este horrível buraco de Aden onde tanto sofri. Também é verdade que vou fazer uma viagem terrível: daqui a Choa (quer dizer, de Tadjura a Choa) são uns cinquenta dias de jornada a cavalo por desertos escaldantes. Mas na Abissínia o clima é delicioso, não faz calor nem frio, a população é cristã e hospitaleira, leva-se uma vida fácil, é um lugar de repouso muito agradável para os que embruteceram durante alguns anos nas margens incandescentes do Mar Vermelho (...)

Tadjura, 28 de Fevereiro de 1886: (...) Dentro de um mês, ou seis semanas, o verão vai recomeçar nesta costa maldita. Espero não passar por cá muito tempo e, daqui a alguns meses, refugiar-me nos montes da Abissínia, que é a Suiça africana, sem invernos e sem verões; primavera e verdura perpétua, e a existência gratuita e livre! (...)

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2 Comments:

Blogger Jumpseat said...

... um dia disseram-me:

"Mestre, é aquele que põe por palavras, tudo aquilo que já sentíamos, só ainda não sabíamos dizer..."

Quando o meu pai me enviou o seu poema , que tenho no meu blog, foi um demiurgo - o Rui escrevera por palavras, tudo aquilo que eu sentia sobre viajar... só ainda não sabia como dizer...

Hoje, entar no meu blog e ver um comentário seu, foi nostálgicamente estranho e muito, muito bom!

Uma sensação única.

Muito Obrigado! *

... pelo comentário... e pelo seu trabalho, tão especial...

03:48  
Anonymous Anónimo said...

Rimbaud é um personalidade fascinante, fico amedrontado toda vez que o leio pois de mim também exalam alguns instintos poéticos que quase sempre e rapidamente tento sufocar. Mas quem não sente essa inquietação estranha ao lê-lo. Vacilamos ante está vida errante que ele nos propõe a cada instante, errante sim mas não falta uma nobreza em cada cansaço descrito, nenhum passo ou palavra é gratuito. Todos os seus atos me parecem sensatos e precisos no que se refere a objetivos concretos, embora só consigamos enxergar sob um véu apenas o caos e aconfusão

17:31  

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