julho 09, 2007

Partir para Algures: Jean Arthur Rimbaud (1)

«Porque há-de parecer que um espírito, excepcionalmente dotado para as letras, volte de repente as costas à literatura, desinteressando-se por completo de uma actividade onde se magnificava? Que haja em tal recusa escândalo para toda a gente, demonstra que valor incomensurável atribuem todos ao exercício da poesia.
O escândalo de Rimbaud tomou múltiplas formas: em primeiro lugar, escreve obras-primas, renuncia a escrever outras enquanto parece capaz de continuar a produzi-las. Renunciar a escrever, quando se deu conta que se era um grande escritor, não passa sem constituir mistério absoluto. Tal mistério aumenta quando se descobre o que Rimbaud pede à poesia: não que produza belas obras, nem que responda a um ideal estético, mas que ajude o homem a partir para algures, a ser mais ele próprio, a ver mais do que pode ver, a conhecer o que não pode conhecer - numa palavra, fazer da literatura uma experiência que engloba o todo da vida e o todo do homem (...).
E tão grande é o respeito do homem pela decisão de se levar ao extremo, tão grande a certeza de não se poder trair um tal esforço senão obedecendo-lhe, que a renúncia de Rimbaud, longe de ser tomada por uma infidelidade ao movimento que a inspirou, surgiu como o momento superior, aquele onde ele atingiu verdadeiramente o cume e que, por via disso, nos resta inexplicável.
(...)
O silêncio não data de 1873.
Rimbaud, mesmo quando pretendeu "encontrar uma língua" falou sempre o menos possível. Em público, quase não abre a boca. É taciturno, lança por vezes uma injúria, distribui pancada. "Imagino-me a encontrá-lo um dia em pleno Saará, após muitos anos de separação - escreve um dos seus camaradas. Estamos isolados e dirigimo-nos em sentidos contrários. Ele pára por instantes. - Bom dia, como passas? - Bem. Adeus. E continua o seu caminho. Nem a menor efusão. Nem uma palavra a mais". Nada de palavras. Já não sei falar. Todos os seus poemas, o menos dos seus textos significam a sua própria aridez superior, a necessidade de tudo dizer num tempo de relâmpago, estranho à faculdade de dizer que, essa, precisa de duração. Já visto. Já tido. Já conhecido. Tal é a "partida" que escrevendo não fez mais que recomeçar, partida que, um dia, teve lugar e que, ao fim, terminou nestas linhas:
"Que quereis que vos escreva? que uma pessoa se aborrece, se enfastia, se embrutece; que está farta mas que não pode acabar com isso, etc., etc! Eis tudo, tudo o que por consequência se pode dizer; e como isto também não alegra os outros, o melhor é calar."»
(texto de Maurice Blanchot in Cartas da Abissínia de Arthur Rimbaud seguido de Mar Vermelho de Philippe Soulpault; Trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares; Edições & etc; Lisboa 2000)
O mistério é esse, o fundamento, a passagem: com Rimbaud, o desregamento da alma e dos sentidos através da fadiga e da deslocação no espaço: ver mais do que pode ver, conhecer o que não pode conhecer. Há definitivamente duas formas de partir para algures: conferir o périplo ao travão de mão de um agente ou de um guia, que tudo decide e planeia, alheando-se de nós e remetendo-nos a uma bolha protegida, uma redoma mediana, burguesa; ou não travar, ir, provar, fazer e refazer o inverso da rotação da terra, parar o tempo, demorar semanas, meses ou anos, desaparecer. J.A. Rimbaud escolheu a segunda.

Etiquetas: , , ,

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

a vida deste escritor é impressionante, da violência inicial ao silêncio (precoce) total. Mas ficou a extraordinária obra.

21:48  
Blogger Cabelo 67 said...

Este comentário foi removido pelo autor.

12:51  

Enviar um comentário

<< Home