agosto 19, 2007

Veneza: Beleza e Morte

Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) in Der Tod in Venedig
Joseph Brodsky deixa expressamente entender no seu Watermark não ter nutrido grande simpatia por Der Tod in Venedig (Death in Venice; Morte em Veneza), de Thomas Mann, bem como pelo filme de Luchino Visconti, de 1971, com Dirk Bogarde no papel de Gustav von Aschenbach e a música da 5ª Sinfonia de Mahler. Mas Brodsky acaba por ceder quando escreve (Watermark; Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993): «Mesmo assim, a longa sequência inicial, com o Sr. Bogarde numa cadeira de repouso, a bordo de um navio, fez-me esquecer os méritos ou deméritos da obra e lamentar não sofrer de uma doença mortal; ainda hoje sou capaz de reviver esse sentimento». Mas de uma ou outra maneira, partilhemos ou não a opinião de Brodsky, a obra de Mann é um prodígio do século passado (1912) e a sua adaptação por Visconti um dos mais belos filmes da história do cinema.

Luchino Visconti

Não vou fazer qualquer abordagem específica a Der Tod in Venedig nem ao filme de Visconti porque não é o lugar, nem tão pouco me considero habilitado. E todos sabemos de antemão qual é a história e do que se trata. E do que se trata é da busca da beleza, do belo, seja qual for e como nos apareça. Mesmo que Mann a entenda numa perspectiva mais platónica, como uma forma, como algo em em si e por si, e que devemos procurar abertos a todas as possibilidades («Pois a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é - nota bem! - a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos (...) e por isso ela é também caminho do artista para o espírito»; citamos Der Tod in Venedig; Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978). Ou Brodsky considere, ainda em Watermark, que «a beleza não pode ser tomada como um alvo, que ela é sempre um subproduto de outras demandas, muitas vezes banalíssimas». Seja como for, em Veneza, no Inverno, «os leões alumiam os nossos crepúsculos» (Watermark) e na Primavera, e com o início da época balnear, «sob um céu pálido e toldado, quando mar jaz, parado e mortiço (...), limitado ao largo por um horizonte insípido que parecia próximo e tão recuado da praia que deixava a descoberto faixas sucessivas de longos bancos de areia», julgamos «cheirar no ar o odor fétido da laguna» (Der Tod in Venedig; Morte em Veneza, continuamos com a tradução de Sara Seruya para a edição da Europa-América).

Aqui, no livro de Mann deixámos definitivamente o Inverno para sentir os avanços da estiagem. E o perigo, a vaga impressão na atmosfera e nas ruas e canalli de uma cidade tolhida por um calor espesso e pelo sciroco angustia tremendamente Gustav Von Aschenbach, que nisso pressente uma ameaça, um fim próximo, «uma desfiguração estranha do mundo». O mal, a doença subreptícia, que tínhamos entrevisto em Don`t Look Now, de Roeg (mas no Inverno), adensa-se lentamente e de outra forma à medida que Von Aschenbach prolonga a sua estadia em Veneza e acentua o êxtase pelo jovem aristocrata polaco Tadzio, a personificação do belo. No filme de Visconti, o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler faz pender a balança ainda mais para o lado da incerteza, do torpor e de uma mágoa e fôlego insuportáveis.

Gustav Mahler

Von Aschenbach, que no livro de Thomas Mann é um escritor, é na obra de Luchino Visconti um músico - há aqui uma aparente e parcial contradição, pois parece que Mann se inspirou para escrever o seu livro quando viu o compositor Gustav Mahler, caído em lágrimas (seria da perfeição, da distribuição da luz?), na estação de Santa Lucia, a deixar Veneza; fez, contudo, que o protagonista da história fosse músico, mas deu-lhe o nome de Gustav, como primeiro nome; Visconti pegou no nome de Mann mas fez de Aschenbach músico, esse criador da mais incorpórea das artes, e rematou a sua obra com a música imortal do verdadeiro Gustav, o Mahler -, um músico que no seu quinquagésimo aniversário deixa Munique, por uma súbita sensação de «vertigem de fuga e(...) avidez de libertação», e parte para o Sul, para Veneza, onde decide abordar a cidade da única maneira que ela deve ser abordada, a única que faz sentido, a mais perfeita: por barco, em mar alto. É aqui que entroncamos na tal longa sequência inicial, do filme de Visconti, com o Sr. Bogarde, na cadeira de repouso, de que Brodsky fala. A música acentua o carácter melancólico da navegação do vaporetto, com Von Aschenbach, de olhar parado, sofrido, doentio, a ver a aproximação de San Marco. É um momento único em todos os sentidos. Um momento magistral do cinema, que o livro de Mann também prodigiosamente insinua, faz ver, pelo suporte da literatura.

Gustav Von Aschenbach, uma vez no cais de San Marco, pedirá a um gondolieri que o leve, mais a bagagem, à ilha do Lido. Mas logo ali, antes de embarcar, «tudo aquilo lhe aparecia como prenúncio de algo de invulgar, dir-se-ia que começava a envolvê-lo um alheamento próximo do sonho» (continuamos a citar Morte em Veneza, da Europa-América), como se Veneza já estivesse contaminada por algo imperceptível, que pouco a pouco, durante a temporada estival de Aschebach no Hotel des Bains, no Lido, se iria instaurar e pegar-se, tal uma ferida, com os cheiros da laguna e o sciroco, numa mistura real e impossível de dor e beleza, beleza e morte, agonia e superioridade, caminhos para o espírito, deslocações dos sentidos e visões banais. E nós sabemos, como sabiam Brodsky, Mann, Visconti, Mahler e Von Aschenbach, que tudo isso anda ligado. No Inverno e na Primavera. É preciso é olhar de novo.

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