julho 31, 2007

Partir para Algures: Jean Arthur Rimbaud ou o Esquecimento

Philippe Soupault, também ele viajante compulsivo e infatigável, escreveu um conjunto breve de impressões de uma jornada feita em 1951 ao Mar Vermelho, também ela na busca dos trilhos perdidos de Jean Arthur Rimbaud. A memória de Soupault é um relato assombroso, onde o real e o imaginário se cruzam continuamente num contínuo desfasamento da alma e dos sentidos. Soupault traça, como Rimbaud, um périplo perigoso, e antevê o que está além. Usa os territórios e funde-se. Opera o esquecimento de si. Altera-se, vítima de uma metempsicose. Vê mais do que se pode ver, vai mais à frente do que se pode ir. Não é isso que fazem todos os que partem para algures?
O texto é belíssimo, crú, árido e vago como o Mar Vermelho. Fica aqui a última parte.
Mar Vermelho. P.S. em 1982
«O Mar Vermelho é um íman que atraiu os homens que iriam agitar os alicerces do mundo.
Não é que nos obstinemos a determinar o segredo das partidas de Rimbaud nem descobrir necessariamente o seu esquecimento da poesia, mas, mais simples do que isso, saber dos porquês do Mar Vermelho e suas margens fascinarem o viajante infatigável, nunca satisfeito, sempre à procura de novas luzes e novos mistérios.
Foi nessas margens que eu segui os itenerários traçados pelo futuro "negociante", itenerários que ele finalmente havia preferido - ele que falava em regressar a França para se casar e fazer um filho que seria "engenheiro".
Tendo procurado as pistas de Rimbaud em Londres e em Chipre, fui a Aden, via a Arábia, Harar, a Etiópia. Em 1951. Ao explorar o Mar Vermelho, vi-me metaforseado. Não foi tanto a descoberta de um universo diferente; nem a solidão; mas uma metempsicose. Je est un autre. O homem que eu acreditava ser já não se parecia comigo. Experiência dolorosa mas irreversível. Inútil lutar contra esta ruptura. O olvido.

A sombra de Rimbaud, imperceptível, era impossível não se ficar obsecado por ela. Sombras. O que o vidente não podia conhecer nem mesmo imaginar. E no entanto ...

Os que encontrei eram também eles vítimas do esquecimento. Mesmo aquele milionário, senhor Besse que, alguns anos depois da partida do negociante havia feito fortuna ao retomar por sua conta os projectos que o ardenense teve de abandonar. Mesmo aqueles fantasmas ou aqueles destroços que erravam de Djibuti a Aden sem espírito de regresso.

A última viagem, a viagem da agonia do carregador de luíses de ouro. Saberia ele que ia morrer?»

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julho 26, 2007

Partir para Algures: Jean Arthur Rimbaud (5)

Jean Arthur Rimbaud, a sofrer de um tumor no joelho, faz-se transportar de maca, coberta por uma cortina, pela costa, de Harar a Zeilah, em quinze dias. Em Zeilah, derreado, paralisado, embarca no vapor, durante três dias, para Aden, onde passa uma quinzena. Devido à gravidade do seu estado, os médicos sugerem repatriá-lo para França, para ser hospitalizado. Em 20 de Maio de 1891 dá entrada no Hôpital de la Conception, em Marselha. A 25 de Maio é-lhe amputada a perna direita. Internado, doente, dependente das muletas, enviado a uma existência sedentária, consciente da sua debilidade e dos perigos próximos, 10 anos depois de ter partido de França para a sua imensa e barroca jornada africana, escreve:
Marselha, 10 de Julho de 1891: (...) Que maçada, que fadiga, que tristeza ao pensar em todas as minhas antigas viagens, e em como me encontrava há cinco meses apenas! Onde estão as caminhadas através dos montes, as cavalgadas, os passeios, os desertos, os rios e os mares? (...) E eu que justamente tinha decidido regressar este verão para me casar! Adeus casamento, adeus família, adeus futuro! A minha vida foi-se, não sou mais do que um cepo imóvel. (...)
A 23 de Julho do mesmo ano Rimbaud deixa o Hospital e apanha, sózinho, o combóio para Roche, aonde não regressava há 10 anos. Contudo, em 23 de Agosto o seu estado agrava-se novamente e é obrigado a voltar para Marselha, acompanhado da sua irmã Isabelle. E leva uma ideia fixa: embarcar outra vez para África. Chega a fazer planos para esse fim. Mas a doença, que se generaliza rapidamente, irá impedi-lo.
A 10 de Novembro de 1891, às dez horas da manhã, Jean Arthur Rimbaud morre em Marselha, no Hôpital de la Conception, depois de várias semanas em semi-coma. A sua irmã Isabelle acompanhou-o nesta longa agonia. A notícia da sua morte será conhecida em Paris não antes de 1 de Dezembro.
Mas a 9 de Novembro de 1891, exactamente na véspera da sua morte, Rimbaud ainda tinha escrito uma carta, a sua última, dirigida ao Director dos Transportes Marítimos de Marselha. A sua ideia era regressar a África, pelo Suez. As últimas palavras dessa carta ficaram na nossa memória como uma apologia da partida ... para algures ...
(...) Dizei-me a que horas devo ser transportado para bordo ...

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julho 23, 2007

Partir para Algures: Jean Arthur Rimbaud (4)

Fragmentos, cartas, passagens: Rimbaud prossegue, desaparece progressivamente, entre fadigas e privações. Volta ao Cairo, pensa regressar à Abissínia, partir até Zanzibar, ou até à China, quem sabe onde? Fica por Harar; mas adivinhava-se ...
Cairo: 23 de Agosto de 1887: (...) Vim para aqui porque este ano os calores eram insuportáveis no Mar Vermelho: todo o tempo de 50 a 60 graus; e, encontrando-me muito enfraquecido, após sete anos de fadigas que nem se pode imaginar e privações as mais abomináveis, pensei que dois ou três meses aqui me restabeleceriam; mas são mais despesas, dado que não encontro nada para fazer, e a vida é à europeia e muito cara. Ultimamente, tenho sido atormentado por uma dor reumática nos rins, que me faz perder a paciência; tenho uma outra na coxa esquerda que de vez em quando me paralisa, uma dor articular no joelho esquerdo, uma dor (já antiga) no ombro direito; tenho os cabelos todos grisalhos. Sinto a minha vida preclitante. Façam ideia de como uma pessoa deve ficar depois de proezas do género das seguintes: travessias de mar e viagens por terra a cavalo, de barco, sem roupas, sem comida, sem água, etc., etc. (...) Não ficarei muito tempo por aqui: não tenho emprego e é tudo muito caro. Devido a isto, deveri voltar para os lados do Sudão, da Abissínia ou da Arábia. Talvez vá até Zanzibar, de onde se podem fazer longas viagens a África, e talvez à China, ao Japão, quem sabe onde? (...)
Harar, 18 de Maio de 1889: (...) pois creio que devemos ter um ar excessivamente barroco após tão longa estadia em terras como estas.

Harar, 10 de Novembro de 1890: Minha querida Mamã: Recebi a tua carta de 29 de Setembro de 1890. Ao falar de casamento quis eu dizer que entendia ficar livre para viajar, viver no estrangeiro ou mesmo continuar a viver em África. Estou de tal modo desabituado do clima da Europa que dificilmente voltaria para aí. Provavelmente, ser-me-á até necessário passar dois invernos fora, isto admitindo que um dia possa voltar a França. E depois, como poderei refazer relações, que empregos poderei encontrar? - É ainda uma questão a pôr-se. Aliás, se há coisa que me é impossível é a vida sedentária. Seria necessário que eu encontrasse alguém que me seguisse nas minhas peregrinações. (...) Quanto a Harar, não há nenhum cônsul, nem nenhum posto, nem nenhuma estrada; chega-se aqui por camelo e vive-se exclusivamente entre negros. Mas enfim, é-se livre e o clima é bom. Tal é a situação. Adeus.

Harar, 20 de Fevereiro de 1891: (...) um ano aqui vale por cinco noutro lado. Envelhece-se muito depressa, como em todo o Sudão. (...)

Aden, 30 de Abril de 1891: Querida Mamã, (...). Vendo crescer constantemente o inchaço no meu joelho direito e a dor na articulação sem encontrar remédio nem conselho, pois em Harar estamos no meio dos negros e não há nenhum europeu, resolvi ir-me embora. (...) Contratei dezasseis carregadores negros, à razão de 15 talaris cada um, de Harar a Zeilah, mandei fabricar uma maca com uma cobertura de tela, e foi em cima dela que acabei de percorrer em 12 dias os 300 quilómetros de deserto que separam as montanhas de Harar do porto de Zeilah. É inútil dizer-vos os sofrimentos horríveis que suportei durante a viagem, sem nunca poder dar um passo fora da maca, o meu joelho inchava a olhos vistos e a dor aumentava constantemente. (...) Quanto a mim, ela foi certamente causada pelo cansaço das caminhadas a pé e a cavalo em Harar. (...)

Hospital de la Conception, Marselha, quinta-feira, 21 de Maio de 1891: Minha querida Mamã, minha querida irmã: Após sofrimentos terríveis, não tendo podido tratar-me em Aden, apanhei o barco da Transportadora para regressar a França. Cheguei ontem, depois de treze dias cheio de dores. Sentindo-me demasiado fraco à chegada e transido de frio, tive de dar entrada aqui no Hospital de la Conception, onde pago 10 francos por dia, com remédio incluído. (...)

Telegrama de Rimbaud à Mãe: Marselha, 22 de Maio de 1891. Expedido às 2h50: Hoje, tu ou a Isabelle, venham a Marselha por comboio expresso. Segunda de manhã amputam-me a perna. Perigo de morte. Tratar de assuntos importantes. Arthur. Hospital Conception. Respondam.

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julho 19, 2007

Partir para Algures: Jean Arthur Rimbaud (3)

«O "estilo" da correspondência (de Rimbaud) caracteriza-se por não se caracterizar. Rimbaud não se dirige a companheiros de letras mas à família, a colegas de negócios, a jerarcas locais. Escreve ao correr da pena e da pressa, nos intervalos de partidas e chegadas. Procura, no entanto, entre desabafos da psique e relatos dos padecimentos físicos, fornecer apontamentos geográficos, climatéricos, antropológicos - o quanto basta para o enquadramento, junto dos destinatários, das situações em que se encontra. Ausente o "poeta" (de notar que em toda a correspondência não há a mínima alusão ao passado literário ou amoroso), é o homem de acção, com o seus projectos, sucessos poucos e desaires muitos, que ressalta. Instável, irascível, desamparado. Afinal, como O OUTRO!».

(texto de Vitor Silva Tavares in Cartas da Abissínia de Arthur Rimbaud seguido de Mar Vermelho de Philippe Soulpault; Trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares; Edições & etc; Lisboa 2000)

Cartas

Harar, 13 de Dezembro de 1880: Cheguei a este país depois de vinte dias a cavalo através do deserto somali. Harar é uma cidade colonizada pelos egípcios e dependente do governo deles. A guarnição é de vários milhares de homens. A nossa agência e os nossos armazéns estão aqui instalados. Os produtos comerciáveis são o café, o marfim, as peles, etc. O país é alto mas não árido. O clima fresco e não doentio. Todas as mercadorias são importadas da Europa e transportadas por camelos. Aliás, há muito a fazer nesta terra. Não temos aqui correio regular. Somos obrigados a enviar a correspondência para Aden, e só de tempos a tempos. Por conseguinte, só recebereis esta carta daqui a muito tempo. (...)

Harar, 25 de Maio de 1881: (...) Ai de mim! Não tenho apego nenhum à vida, e se vivo, é porque estou habituado a viver de fadigas; mas se for forçado a continuar a fatigar-me como até agora e a alimentar-me de mágoas tão veementes como absurdas nestes climas atrozes, temo abreviar a minha existência (...).

Harar, 6 de Maio de 1883: (...) A vida é assim, e a solidão é uma coisa má nestas paragens. Pelo que me diz respeito, lamento não ter casado e não ter família própria. Mas agora estou condenado à errância, ligado a uma empresa longínqua, e todos os dias perco o gosto pelo clima e pelas maneiras de viver, e mesmo pela língua da Europa. Helás! para que servem estas idas e vindas, estas fadigas e aventuras junto de raças estrangeiras, e estas línguas como que se atafulha a memória, e estes sofrimentos inomináveis, se um dia, após vários anos, não puder repousar num lugar que me agrade mais ou menos e ter uma família, a ter pelo menos um filho a quem passe o resto da vida a educar segundo as minhas ideias, a ilustrar e a dotar com a instrução mais completa que se pode adquirir nesta época, e que eu veja tornar-se num engenheiro de renome, um homem poderoso e rico através da ciência? Mas quem sabe quanto poderão durar os meus dias aqui nestas montanhas? E posso desaparecer no meio destas tribos, sem que a notícia alguma vez seja divulgada (...)

Aden, 5 de Maio de 1884: (...) Perdoem-me que vos conte em pormenor as minhas preocupações. É que vejo que estou a chegar aos trintas anos (metade da vida!) e que me cansei muito a correr mundo, sem resultado (...)

Aden, 10 de Setembro de 1884: (...) Sinto porém que estou a envelhecer muito depressa (...)

Aden, 18 de Novembro de 1885: Estou feliz por deixar este horrível buraco de Aden onde tanto sofri. Também é verdade que vou fazer uma viagem terrível: daqui a Choa (quer dizer, de Tadjura a Choa) são uns cinquenta dias de jornada a cavalo por desertos escaldantes. Mas na Abissínia o clima é delicioso, não faz calor nem frio, a população é cristã e hospitaleira, leva-se uma vida fácil, é um lugar de repouso muito agradável para os que embruteceram durante alguns anos nas margens incandescentes do Mar Vermelho (...)

Tadjura, 28 de Fevereiro de 1886: (...) Dentro de um mês, ou seis semanas, o verão vai recomeçar nesta costa maldita. Espero não passar por cá muito tempo e, daqui a alguns meses, refugiar-me nos montes da Abissínia, que é a Suiça africana, sem invernos e sem verões; primavera e verdura perpétua, e a existência gratuita e livre! (...)

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julho 12, 2007

Partir para Algures: Jean Arthur Rimbaud (2)

A Quimera do Ouro
«Eis o relato da viagem à Etiópia. É o documento mais importante e mais pormenorizado, pela mão de Rimbaud, sobre a sua jornada africana. (...) Tem, além do mais, um valor psicológico sobre o qual não é necessário insistir. Basta lançar-lhe uma vista e olhos para nos apercebermos de que o poeta está morto, que apenas subsiste o explorador, o comerciante. O aventureiro do real sucedeu ao aventureiro do ideal. Aliás, é no fundo o mesmo homem, o mesmo carácter insociável e inconstante, com a sua perpétua instabilidade, a sua necessidade de mudança e renovação, o seu devorador, apaixonado desejo de posse: apenas mudou o objecto da conquista. A solução de continuidade, nesta vida trepidante, é mais aparente do que real. Ele próprio tinha previsto a prodigiosa metamorfose, o seu destino de pioneiro e pesquisador de ouro. Como não recordar as palavras proféticas da Saison en enfer?
Dou por finda a jornada, deixo a Europa. O ar marinho abrasará os meus pulmões, longínquos climas me curtirão. (...) Regressarei com membros de ferro, a pele tisnada, o olhar furioso; pela máscara, julgar-me-ão de uma raça forte. Terei ouro. (...) Embrenhar-me-ei nos negócios políticos. Salvo.
Salvo, não. Vencido. Mas herói, sem dúvida alguma, lançado de cabeça baixa nos desertos de África como ainda há pouco na solidão das ideias, ávido do desconhecido, apaixonado pelo ignoto, talvez o tipo mais audacioso de explorador.»
(texto de Jean-Marie Carré in Cartas da Abissínia de Arthur Rimbaud seguido de Mar Vermelho de Philippe Soulpault; Trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares; Edições & etc; Lisboa 2000)

Depois, a 5 de Maio de 1884, Jean Arthur Rimbaud escreveria, de Aden, no actual Yemen, na península arábica:

«(...) Não posso dar-vos um endereço para a resposta a esta carta, pois pesoalmente ignoro para onde irei proximamente arrastado, por que caminhos, por onde, e porquê e como!»
E também de Aden, a 15 de Janeiro de 1885, pouco menos de um ano depois:
«(...) Em todo o caso não esperem que o meu temperamento se torne menos vagabundo; pelo contrário, tivesse eu meios para viajar e não fosse obrigado a ficar para trabalhar e ganhar a vida, não me veriam dois meses no mesmo sítio. O mundo é tão grande e tão cheio de regiões magníficas que para visitá-las todas nem a vida de mil homens bastaria. Mas, por outro lado, não gostaria de nadar a vagabundear na miséria, gostaria de ter alguns milhares de francos de rendimentos e poder passar o ano em dois ou três lugares diferentes, vivendo modestamente, fazendo alguns negociositos para poder pagar as minhas despesas. Viver todo o tempo no mesmo sítio, hei-se sempre achar isso muito triste. Enfim, o mais provável é que uma pessoa vá para onde não quer, que faça o que não queria, e viva e morra de um modo totalmente diferente do que sempre desejou, sem esperar qualquer espécie de compensação (...).»

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julho 09, 2007

Partir para Algures: Jean Arthur Rimbaud (1)

«Porque há-de parecer que um espírito, excepcionalmente dotado para as letras, volte de repente as costas à literatura, desinteressando-se por completo de uma actividade onde se magnificava? Que haja em tal recusa escândalo para toda a gente, demonstra que valor incomensurável atribuem todos ao exercício da poesia.
O escândalo de Rimbaud tomou múltiplas formas: em primeiro lugar, escreve obras-primas, renuncia a escrever outras enquanto parece capaz de continuar a produzi-las. Renunciar a escrever, quando se deu conta que se era um grande escritor, não passa sem constituir mistério absoluto. Tal mistério aumenta quando se descobre o que Rimbaud pede à poesia: não que produza belas obras, nem que responda a um ideal estético, mas que ajude o homem a partir para algures, a ser mais ele próprio, a ver mais do que pode ver, a conhecer o que não pode conhecer - numa palavra, fazer da literatura uma experiência que engloba o todo da vida e o todo do homem (...).
E tão grande é o respeito do homem pela decisão de se levar ao extremo, tão grande a certeza de não se poder trair um tal esforço senão obedecendo-lhe, que a renúncia de Rimbaud, longe de ser tomada por uma infidelidade ao movimento que a inspirou, surgiu como o momento superior, aquele onde ele atingiu verdadeiramente o cume e que, por via disso, nos resta inexplicável.
(...)
O silêncio não data de 1873.
Rimbaud, mesmo quando pretendeu "encontrar uma língua" falou sempre o menos possível. Em público, quase não abre a boca. É taciturno, lança por vezes uma injúria, distribui pancada. "Imagino-me a encontrá-lo um dia em pleno Saará, após muitos anos de separação - escreve um dos seus camaradas. Estamos isolados e dirigimo-nos em sentidos contrários. Ele pára por instantes. - Bom dia, como passas? - Bem. Adeus. E continua o seu caminho. Nem a menor efusão. Nem uma palavra a mais". Nada de palavras. Já não sei falar. Todos os seus poemas, o menos dos seus textos significam a sua própria aridez superior, a necessidade de tudo dizer num tempo de relâmpago, estranho à faculdade de dizer que, essa, precisa de duração. Já visto. Já tido. Já conhecido. Tal é a "partida" que escrevendo não fez mais que recomeçar, partida que, um dia, teve lugar e que, ao fim, terminou nestas linhas:
"Que quereis que vos escreva? que uma pessoa se aborrece, se enfastia, se embrutece; que está farta mas que não pode acabar com isso, etc., etc! Eis tudo, tudo o que por consequência se pode dizer; e como isto também não alegra os outros, o melhor é calar."»
(texto de Maurice Blanchot in Cartas da Abissínia de Arthur Rimbaud seguido de Mar Vermelho de Philippe Soulpault; Trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares; Edições & etc; Lisboa 2000)
O mistério é esse, o fundamento, a passagem: com Rimbaud, o desregamento da alma e dos sentidos através da fadiga e da deslocação no espaço: ver mais do que pode ver, conhecer o que não pode conhecer. Há definitivamente duas formas de partir para algures: conferir o périplo ao travão de mão de um agente ou de um guia, que tudo decide e planeia, alheando-se de nós e remetendo-nos a uma bolha protegida, uma redoma mediana, burguesa; ou não travar, ir, provar, fazer e refazer o inverso da rotação da terra, parar o tempo, demorar semanas, meses ou anos, desaparecer. J.A. Rimbaud escolheu a segunda.

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julho 01, 2007

Imenso Mediterrâneo Branco (3)

Predrag, o geógrafo, o historiador, o narrador, o poeta, por vezes deixa de lá estar. Deixa-nos sós, parte por cima das areias que se estendem das praias do Norte de África à Córsega e reaparece subitamente nos rochedos isolados do mar e na Républica da Ragusa ou em Veneza. Enquanto nos deixa sós, deixa-nos com tudo o que é imenso em tão pouco. Deixa-nos com cada palavra e frase, com cada voz que repete até à exaustão a aventura mediterrânica. Não podemos pretender mais. Predrag encarna a própria cor e ondulação do mediterrâneo, que, como ele mesmo refere, têm a sua natureza e consistências próprias consoante cada corrente ou ponto indefinido do mar. Temos a sensação de que abandona os navios e as embarcações, as cidades e dos territórios marcados para se retirar para os faróis, de onde nos envia notícias e relatos de uma espécie de desaparecimento. Matvejevitch torna-se um viajante em todos os sentidos, mesmo que um deles o seja apenas à roda do seu quarto. Magris assentua, na sua Introdução (Para uma Filologia do Mar): «Ao lermos este breviário temos por vezes a impressão de que aquele que fala é um desses homens mencionados no próprio livro, que viveram diante do mar, guardando faróis e realizando dicionários de marinharia. Mas hoje em dia todo o verdadeiro Ulisses deve vestir, além da sua blusa do marinheiro, um roupão, como ainda não há muito escrevia Giorgio Bergamini, e aventurar-se pelas sua biblioteca dentro, tanto ou até mais que por entre as ilhas perdidas; o Ulisses contemporâneo deve ser um perito na distanciação do mito e no exílio da natureza, uma explorador da ausência e da deserção da vida verdadeira».
O Mediterrâneo pode pois tornar-se uma biografia, um interminável palimpsesto, um movimento que toma conta de nós e nos conduz para lugares incertos, aonde somos acompanhados por gaivotas solitárias, nas quais veremos notícias de uma esperança ou de desastres, com o Mediterrâneo estendendo-se a toda a volta cada vez mais branco.
Retomemos, neste sentido, Matvejevitch, em um dos momentos iniciais de Mediteranski Brevijar (ainda acompanhando a edição portuguesa da Quetzal, com tradução de Pedro Tamen):
«O lugar donde partimos importa menos que aquele aonde chegamos. Porque ora todos os mares parecem formar um só, sobretudo quando é longa a viagem, ora cada uma deles nos parece ser outro mar. Partamos, por exemplo, do Adriático. Daqui, o litoral setentrional, desde Málaga ao Bósforo, está mais próximo e é mais acessível. No Sul, de Haifa até Ceuta, tornam-se mais raras as baías e os portos. Percorri de ilha em ilha o mar Jónio e o mar Egeu, entre Cíclades e Espórades, em busca das suas semelhanças e das suas diferenças. Comparei a Sicília e a Córsega, Maiorca e Minorca. Não fiz escala em todas as costas. Demorei-me mais tempo nos lugares onde os rios desaguam. É difícil conhecer todo o Mediterrâneo

Depois, daí para a frente, quanto mais conhecemos mais nos perdemos. Então, como qualquer memória, lugar ou visitação, e nos momentos em que um lado luminoso nos esquece em direcção a um outro que registámos na nossa consciência, o Mediterrâneo adquire para nós e para todos os que nele viveram e morreram o carácter de uma deriva contínua, de uma metáfora.

E se quisermos, porque a tal iriam ter, mais tarde ou cedo, os seguimentos que poderíamos sugerir para a linha seguinte, pela qual seríamos conduzidos ao princípio ou ao fim, consoante a perspectiva ou o momento: também o carácter de um destino, tantas vezes associado a um ponto cardeal ou a uma latitude no horizonte:

«A gente do Norte assimila muitas vezes Sul e Mediterrâneo: qualquer coisa a atrai para ele, mesmo quando permanece apegada à sua terra natal. Mais que a simples necessidade de um sol quente e de uma luz mais viva. Não sei se é permitido qualificar isto de «fé no Sul». É possível uma pessoa, independentemente do lugar onde nasceu e onde vive, tornar-se mediterrânica. A mediterraneidade não se herca, adquire-se. É uma distinção, não uma vantagem. Não se trata apenas de história ou de tradições, de geografia ou de raízes, de memória ou de crenças: o Mediterrâneo é também um destino

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