setembro 30, 2007

Ilhas Aran (Óileain Árainn): A Travessia Iniciática

Pouco se prende à nossa sensível condição de demandarmos os lugares da iniciação, aqueles onde por excelência experimentamos os ritos de passagem, como uma travessia. Encontramos costas que se levantam à frente como paisagens mentais, onde, para lá do que pensamos, se esconderá talvez a felicidade, o medo ou a chegada (e a partida) como uma metáfora da existência. As travessias são o que de determinante que se entranha de uma seiva indutiva, através da qual comunicamos com a dimensão mística da busca. A visibilidade do lugar em frente pertence-nos; podemos partir; cada lugar só impressiona porque sugere a visibilidade do próximo. «A viagem (...) é uma viagem no imaginário e no invisível, uma busca de ilha em ilha, como a que Melville, com outros meios, ilustrou em Mardi. O animal goza e morre, o homem maravilha-se e morre. Onde fica o porto?». Há travessias frágilmente importantes, essenciais. É uma colecção que se faz ao longo da vida. Cada demandante tem as suas, umas alternativas, outras únicas, outras que por vezes tocam outras, ainda que imperceptívelmente. Assim a travessia feita pelo Cruzeiro do Canal entre a marina da Horta e o cais da Madalena, no extremo ocidental da ilha do Pico, nos Açores (... inutile phare de la nuit, diria Chateaubriand) e a que vai do cais de Rossaveal (Ros a' Mhíl)>, no Connemara, no coração do Gaeltacht, para o porto de Kilronan (Cill Rónáin), em Inis Mór, a maior das Aran Islands (Oileáin Árainn), um dos últimos degraus, como diria Seamus Heaney, da terra na vastidão fria do Atlântico. Ali, em Kilronan, descendo a rampa ferrugenta do Aran Ditect ou do Aran Ferries, e com a fachada creme e isolada, sob o céu alto e espelhado do fim da tarde de todas as ilhas, do Pier House (Guest House), mesmo em frente, a 100 metros, com as três mesas de madeira à entrada, onde os hóspedes se sentam a beber cerveja enquanto observam os recém chegados, começamos, tendo à direita a costa esfumada e baixa do Connemara e à esquerda a baía de Kilronan, a outra travessia depois da travessia. Francisco José Viegas, também ele demandante apaixonado destas e outras ilhas e costas, de quem já aqui citámos um texto da sua série dos Poemas Irlandeses, conduz-nos nesta sua - e nossa travessia:
«o barco demora pouco tempo neste canal, e leva consigo,/ na direcção de Cill Ronáin, turistas de ocasião que visitam/ Dún Aonghasa e poisam as suas bicicletas no pequeno vale/ abandonado. alguns se demoram mais tempo, ali, olhando o mar,/ onde nenhum segredo nos escondem as aves./ abandonam-se, adormecem, aguardam. algum milagre acontecerá/ para justificar esta travessia
A Travessia para as Aran, Francisco José Viegas (O Medo do Inverno seguido de Poemas Irlandeses; Caminho: 1994)

Did sea define the land or land the sea?/ Each drew new meaning from the waves' collision./ Sea broke on land to full identity. (excerto de Lovers of Aran, Seamus Heaney)

Passagem: Aran Islands ; Kilronan ; Aran Ferries ; Aran Direct

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setembro 24, 2007

Irlanda: a Música (4)

A Irish Music é uma terra santa, um longo caminho, um terrível destino, uma terra que desaparece por sob o nevoeiro que se levanta das ondas, uma visão do que se entranha na paisagem em movimento, onde o tempo corre. Aqui ficam 3 textos com a música e o silêncio dos que a escutam, à beira da costa das ilhas, das praias ao vento e dos portos piscatórios das vilas, com as visões que se esfumam ao longe, como deuses que dançam na memória.
«Os violinistas tocam todos mal,/ Ou amaldiçoadas estão as cordas,/ Tambores e tímbales/ E trompetes estão rebentados, / E o trombone», gritou ele,/ «O trompete e o trombone»,/ E piscando um olho malicioso,/ «Mas o tempo corre, corre.»// «Sou da Irlanda/ Da Terra Santa da Irlanda,/ E o tempo corre», gritou ela./«Por caridade, vinde/ Vinde dançar comigo na Irlanda.»
I Am of Ireland (excerto), W.B.Yeats (W.B.Yeats; Uma Antologia; Selecção e Trad. de José Agostinho Baptista; Assírio & Alvim: 1996)

amei a música como o corpo de Dubhlaing ua Artigan. em Clontarf/ ele tornou-se invisível no meio da batalha e eu previ a sua morte,/ ficando mais só, com a minha música e a minha harpa,/ mágica harpa, terrível destino de a possuir e de amar os seus sons,/ pois que morreram aqueles que os escutaram. quiseram os deuses/ que assim fosse, e esta condenação me perseguirá/ para sempre - onde é a morada de Dubhlaing, o amado incessante.

A Fada de Craig Liath, Aiobhell, Francisco José Viegas (O Medo do Inverno seguido de Poemas Irlandeses; Caminho: 1994)

Presumimos um dia radicar-nos/ Para sempre entre as suas colinas azuis/ E a costa árida onde passámos a noite/ De desespero em oração e vigília, / Mas uma vez colhida a lenha que o mar trouxe,/ Construída uma lareira, e pendurado/ O nosso caldeirão como um firmamento, / Quebrou-se a ilha sob os nossos pés como uma onda./ A terra que nos sustinha parecia/ Só ter firmeza quando a abraçávamos/ In extremis. Tudo o que lá sucedeu,/Creio, foi visão.

The Disappearing Island, Seamus Heaney (de The Haw Lantern, 1987); Trad. de Rui Carvalho Homem; Da Terra à Luz - Poemas 1966-1987; Relógio D`Água Editores: 1997)

Passagem: Irish Music Central

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setembro 18, 2007

Irlanda: A Música (3)

Como se referiu aqui e aqui, na Irlanda, música, poesia, terra, mar e viagem são realidades inseparáveis, formando, cada uma delas, e todas, a nossa grande deslocação através da paisagem. É um tema recorrente em Seamus Heaney, esse, o do movimento que fazemos ao atravessar os vales e as costas a conduzir. Conduzir como forma de ligarmos um lugar ao outro, conduzir como acto de meditação e desnivelamento dos sentidos.

Co. Clare, The Burren, Ireland, Set.2006 (Photo by RC)

A música irlandesa, seja ela a de raíz marcadamente tradicional (o sean-nós), como em Liam O ´Flynn, nos Boys of the Lough ou nessa verdadeira lenda que são os The Chieftains, seja na sua vertente de ressurgimento transmultidisciplinar, onde se incluem as inesquecíveis sonoridades de fusão de Enya, dos Altan, Capercaillie e dos Clannad, seja, finalmente, na nova música e na Pop, com marcas de relevância mundial, como The Waterboys, The Pogues, os U2, Van Morrison (que em parceria com os The Chieftains é autor de um album histórico), The Cranberries e The Corrs, conta-nos, à semelhança da poesia, da literatura e da arte, uma história. Uma história de exílio, de esperança, de tempestades, de caminhos perdidos e rostos lembrados. Através dela perspassamos os olhos e os ouvidos pelas estrelas desaparecidas dos Celtas, pela sua marcha antiga através das pedras e dos túmulos, pelo sol a bater nas cruzes dos cruzamentos do Dhún na nGall, pelas costas agrestes nos Anais Irlandeses, inspirados pela visão parcelar de Tír na NÓg, a terra da juventude, e pelos espíritos das crianças que dançam na praia ao vento, como no poema de W.B.Yeats. As canções e as baladas falam por si mesmo e contam-nos histórias de deuses deitados ao longo de vastos campos de relva. Tempus Vernum ... Deora ar mo chroí ...

Co. Connemara, Ireland, Set.2006 (Photo by RC)

Pelas estradas que cruzam o Connemara, o Donegal, a península de Dingle ou o Ring of Kerry, a música ecoa e sobe pelas bermas de pedra e nos campos de urze e turfa cortada. Como em Seamus Heaney, é a conduzir que lá chegamos ... Por isso, sugerem-se a seguir algumas canções, baladas e músicas irlandesas. São algumas, podiam ser outras; são poucas, podiam ser muitas. Mas são essenciais para o Postscript ou The Peninsula, de Heaney. Ou seja: essenciais para a nitidez das coisas em suas formas,/ água e terra definidas nos seus extremos. Por outras palavras: para conduzir através da peninsula, into County Clare, along the Flaggy Shore,/ In September or October.

1. Dr Macphail's Reel, Capercaillie

2. An Gille Ban, Trad., Capercaillie

3. Siuil A Rún, Trad., Sissel

4. Buachaill On Eirne, Clannad

5. Everywhere, Cara Dillon

6. Coinleach Ghlas An Fhomhair, Trad., Arr: Clannad

7. An Mhaighdean Mhara, Altan

8. Aisling Gheal, Trad., Liam O'Flynn

9. Strange Boat, The Waterboys

10. When Ye Go Away, The Waterboys

11. CarricKfergus, Trad.

12. The Stolen Child, W.B. Yeats/AdaptedTo Music By Mike Scott, The Waterboys

13. Miss Rowan Davies, Boys Of The Lough

14. Buachaill On Eirne, Trad., The Corrs

15. An t-Eilean Mu Thuath, Capercaillie

16. Irish Heartbeat, Van Morrison & The Chieftains

17. Coney Island, Van Morrison

18. Danny Boy, Trad.

19. SHe Moved Through The Fair, Trad., arr. Paddy Moloney The Chieftains & Sinéad O'Connor

20. Celtic Excavation, Van Morrison

21. May It Be, Enya

22. Iona Theme, Capercaillie

23. Colum Cille, Capercaillie

24. The Hebrides, Capercaillie

25. A Gentle Place, Clannad

26. Atlantic Realm, Clannad

27. Calum's Road, Capercaillie

28. Mallai Chroch Schli, Altan

29. Dunford's Fancy, The Waterboys

30. Deireadh An Tuath, Enya

31. On Your Shore, Enya

32. Ode To My Family, The Cranberries

33. With or Without, U2

«Quando mais nada tiveres a dizer, conduz/um dia inteiro contornando a península./O céu tão alto como sobre uma pista,/a terra sem marcas que digam se chegamos,//sempre a caminho, mas sempre aquém de avistar terra./Ao sol-pôr, horizontes sorvem mar e colina,/o campo lavrado engole a branca empena/e estás de novo no escuro. Agora relembra//o brillho da areia, um tronco em silhueta,/aquela rocha que esfarrapava as ondas,/aves marinhas com pernas como andas,/ilhas navegando por entre a névoa,//e regressa a casa ainda sem nada p`ra dizer/a não ser que agora lerás qualquer paisagem/assim: a nitidez das coisas em suas formas,/água e terra definidas nos seus extremos.»

The Peninsula; poema de Seamus Heaney (de Door into the Dark, 1969); Trad. de Rui Carvalho Homem; Da Terra à Luz - Poemas 1966-1987; Relógio D`Água Editores: 1997)

Passagem: Irish Music Central; Irish Music Magazine

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setembro 10, 2007

Irlanda: A Música (2)

The Burren, Co. Clare, Ireland, Set.2006 (Photo by RC)
"By God, the old man could hangle a spade./ Just like his old man", escreve Seamus Heaney em Digging. O velho cantor do Connemara haveria de gostar deste poema. A maior parte da paisagem do Connemara são pequenos campos trabalhados ao longo de gerações, homens "stooping in rhythm through potato drills", a cantarem enquanto erguem os muros pedra a pedra e a interiorizarem as palavras legadas pelos seus antepassados. A música tradicional irlandesa comporta uma espécie de mnemónica; lembra-nos os tempos antigos, e a passagem do tempo, e traz-nos à memória os rostos de amigos ausentes. Por outro lado, também conduz o passado ao futuro; e é, igualmente, uma música essencial e precisa para conduzir.
Seamus Heaney

O poema de Seamus Heaney intitulado Postcript desenvolve um tema recorrente da sua poesia, o acto de conduzir: conduzir como forma de ir de um lugar ao outro, conduzir até ao interior de cada um, conduzir como meditação. Em Postcript estamos no County Clare, aliás a região de origem da maior parte da música de um dos grandes artistas irlandeses, Liam O ´Flynn (uilleann pipes e whistle). O carro é uma espécie de sala de estar, sujeita à cadência da paisagem e às variações do tempo e da atmosfera. Também a música tem esse tipo de vulnerabilidade, à medida que a escutamos a chegar de um outro lugar, porventura vinda do oceano, dos cliffs do Co. Clare, como sucede em Pookas´Tune, Port na bPúcaí, ou então como os antepassados acreditavam que assim fosse.

De Lisdoonvarna a Ballyvaughan, passando por Kilfenora, bem no centro do The Burren e do Co. Clare, e tomando a inesquecível Road Coast 477, para trás, para sul, com as Aran Islands dispostas à direita, chegamos a Doolin, um dos grandes centros de preservação e divulgação da autêntica Irish Music. Aí, protegidos da chuva recorrente, com a música que todas as noites se toca e canta nos pubs, designadamente no Macdermotts e no Gus O`Connors, somos afinal conduzidos a um território outro que nos aparece, vista do Aran View House Hotel, como um ponto de luz no oceano escuro, a brilhar numa das extremidades de Inish Oirr, a mais pequena das Aran e a mais próxima do tempestuoso cais de Doolin. Na Irlanda música e poesia são uma e a mesma coisa; música, terra, mar e paisagem também. Não há uma sem a outra.

And some time make the time to drive out west/ Into County Clare, along the Flaggy Shore,/ In September or October, when the wind/ And the light are working off each other/ So that the ocean on one side is wild/With foam and glitter, and inland among stones/The surface of a slate-grey lake is lit/ By the earthed lightening of flock of swans,/ Their feathers roughed and ruffling, white on white,/ Their fully-grown headstrong-looking heads/Tucked or cresting or busy underwater./ Useless to think you'll park or capture it/ More thoroughly. You are neither here nor there,/ A hurry through which known and strange things pass/ As big soft buffetings come at the car sideways/ And catch the heart off guard and blow it open.

Postsript, Seamus Heaney
Passagem: County Clare; The Burren ; Doolin; Aran View Hotel; Seamus Heaney; Irish Music; Irish Music Bars

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setembro 04, 2007

Irlanda: A Música (1)

Sean-nós, literalmente, significa "old-style", e refere-se geralmente à elevada ornamentação do canto em língua irlandesa (o Gaeltacht) do Connemara, no Oeste da Irlanda: uma arte que persiste desde há séculos e que é ainda, mesmo actualmente, constantemente renovada. Um dos cantores, um homem aí dos seus 80 anos, está sentado a uma fogueira de turfa. Outro velho homem, talvez irmão, está ao seu lado, atento. À medida que aquele canta, a sua voz desfaz-se em pedaços, em notas altas. São pontos num mapa linear; e pode-se pensar que a linha de uma canção sean-nós é como uma dessas estradas pedregosas do Connemara, serpenteando entre muros de pedra, casarões antigos e em ruínas e bungalows recentes:
Your songs, when you sing them with two eyes closed/As you always do, are like a local road/ We`ve known every turn of in the past -
tal como Seamus Heaney escreveu em The Wellhead. Os olhos do cantor do Connemara estão abertos; mas ele está absorto na distância, muito para lá do presente - olhando directamente para o passado, visitando outra vez, pessoalmente, as circunstâncias da canção. E enquanto o inclina os olhos para a paisagem, interrogando-a, o companheiro prende as suas palavras nos lábios, como um viajante silencioso. Os seus olhos fecham-se. Então, o velho cantor chega ao fim da história. Ao ouvir The Wellhead, imaginei os olhos das mulheres cegas do poema, os quais podiam ver o céu reflectido no fundo do poço do vizinho. A imagem do poeta e do músico cegos é antiga. Os antigos bardos irlandeses eram obrigados a deitarem-se na escuridão, nas sombras, com uma pedra a fazer de almofada, até que tivessem acabado de compor o seu poema, cujos versos entrecruzavam padrões de um tapete oriental traduzido em palavras. O famoso O ´Carolan, tocador de harpa, compositor, bebedor, era cego. A poesia e a música contemplam a paisagem. Elas prosseguem lado a lado através dela. Diz-se que toda a música tradicional irlandesa aspira à condição do sean-nós. Esta é uma generalização, mas há nela laivos de verdade. As cadências lentas - por oposição à música de dança - devem atender às palavras não proferidas da canção à qual estão ligadas; e o som do canto (no qual a melodia é tocada com as uilleam pipes) deve ser pensado como o mais próximo da voz humana.

She went away from me, and she moved through the fair,/ And fondly I watched her, move here and move there,/Then she went homeward with one star awake -/ As the swan in the evening moves over the lake.// The people were saying no two were e`er wed,/But one had a sorrow that never was said,/She went away from me with her goods and her gear,/ And that was the last that I saw of my dear.// I dreamed it last night, my dear love came in,/ So sofly she came that her feet made no din,/ She laid her hand on me, and this she did say:/"It will not be long, love, "till our wedding day." (She Moved Thro`The Fair- Traditional (Irish Music)

Passagem: Irish Music; Gaeltacht; Connemara

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