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Pouco se prende à nossa sensível condição de demandarmos os lugares da iniciação, aqueles onde por excelência experimentamos os ritos de passagem, como uma
travessia. Encontramos costas que se levantam à frente como paisagens mentais, onde, para lá do que pensamos, se esconderá talvez a felicidade, o medo ou a chegada (e a partida) como uma metáfora da existência. As travessias são o que de determinante que se entranha de uma seiva indutiva, através da qual comunicamos com a dimensão mística da busca. A visibilidade do lugar em frente pertence-nos; podemos partir;
cada lugar só impressiona porque sugere a visibilidade do próximo. «A viagem (...) é uma viagem no imaginário e no invisível, uma busca de ilha em ilha, como a que Melville, com outros meios, ilustrou em Mardi. O animal goza e morre, o homem maravilha-se e morre. Onde fica o porto?». Há travessias frágilmente importantes, essenciais. É uma colecção que se faz ao longo da vida. Cada demandante tem as suas, umas alternativas, outras únicas, outras que por vezes tocam outras, ainda que imperceptívelmente. Assim a travessia feita pelo Cruzeiro do Canal entre a marina da Horta e o cais da Madalena, no extremo ocidental da ilha do Pico, nos Açores (...
inutile phare de la nuit, diria Chateaubriand) e a que vai do cais de
Rossaveal (Ros a' Mhíl)>, no Connemara, no coração do
Gaeltacht, para o porto de
Kilronan (Cill Rónáin), em
Inis Mór, a maior das
Aran Islands (Oileáin Árainn), um dos últimos degraus, como diria Seamus Heaney, da terra na vastidão fria do Atlântico. Ali, em Kilronan, descendo a rampa ferrugenta do
Aran Ditect ou do
Aran Ferries, e com a fachada creme e isolada, sob o céu alto e espelhado do fim da tarde de todas as ilhas, do
Pier House (Guest House), mesmo em frente, a 100 metros, com as três mesas de madeira à entrada, onde os hóspedes se sentam a beber cerveja enquanto observam os recém chegados, começamos, tendo à direita a costa esfumada e baixa do Connemara e à esquerda a baía de Kilronan, a
outra travessia depois da
travessia.
Francisco José Viegas, também ele demandante apaixonado destas e outras ilhas e costas, de quem já
aqui citámos um texto da sua série dos
Poemas Irlandeses, conduz-nos nesta
sua - e
nossa travessia:
«
o barco demora pouco tempo neste canal, e leva consigo,/ na direcção de Cill Ronáin, turistas de ocasião que visitam/ Dún Aonghasa e poisam as suas bicicletas no pequeno vale/ abandonado. alguns se demoram mais tempo, ali, olhando o mar,/ onde nenhum segredo nos escondem as aves./ abandonam-se, adormecem, aguardam. algum milagre acontecerá/ para justificar esta travessia.»
A Travessia para as Aran, Francisco José Viegas (O Medo do Inverno seguido de Poemas Irlandeses; Caminho: 1994)
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