abril 24, 2007

As Ilhas como Metáfora: A Ilha do Excesso

A Ilha do Excesso
«A ilha é, também, o território do excesso, aquilo a que os gregos chamavam hubris. É numa ilha, com efeito, que Platão situa a Atlântida nos diálogos Timeu e Crítias. Segundo o filósofo ateniense, foi Sólon quem trouxe do Egipto, por volta do ano 600 a.C., a história e a descrição dessa ilha condenada pelos seus excessos. Imensa e opulenta, dividida em dez reinos e em milhares de distritos, com uma capital toda em ouro e marfim, a Atlântida opõe-se ponto por ponto à cidade ideal, modesta e unida, à Atenas arcaica proposta em A República. Será, aliás, a propensão ao desconexo e à multiplicidade que levará a Atlântida à ruína. A ilha é, neste caso, a figura negativa do outro. Outro exemplo da desmesura fatal que podem representar as ilhas encontra-se no Canto IX da Odisseia: depois de ter escapado aos Lotófagos, Ulisses chega à ilha do ciclope Polifemo (a actual Sicília); este devora imediatamente seis dos dez companheiros do viajante. A desmesura é aqui acompanhada de transgressões de todo o tipo, como o consumo de carne humana e de ambrósia em excesso. É precisamente por isso que o ciclope provoca a sua própria perda: Ulisses consegue embriagá-lo, cravar uma estaca no seu olho e fugir da caverna, enganando, mais uma vez, os ditames do destino. Essas costas insulares do excesso são, também, pintadas na banda desenhada, com o pincel de Hergé nas aventuras de Tintin, designadamente nas pranchas da famosa A Estrela Misteriosa, em que a fauna e a flora são gigantescas, ameaçadoras e, simultaneamente, ameaçadas. Porque as ilhas da desmesura são efémeras: «Na literatura utópica, a ilha que desaparece submersa é, também, uma maneira de mostrar que as utupias não podem existir», comenta Alberto Manguel.» (texto de Clémence Boulouque; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)

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abril 18, 2007

As Ilhas como Metáfora: A Ilha-Banca

A Ilha-Banca
«É, inquestionavelmente, a chamada síndrome da «fortuna de além-mar»: a ilha no seu aspecto fantasmático e misterioso, por essência, augura sempre a presença provável de um tesouro. O tesouro não é, obviamente, sempre de ordem financeira - pode tratar-se da descoberta do ser amado ou de uma curiosidade biológica -, mas o materialismo impõe-se com frequência. O emblema mais flagrante dessa imagem é a literatura de piratas e flibusteiros que, através de grandes histórias de aventuras e de heróis carismáticos, alimentou o mito do tesouro insular. A pura invenção não foi necessária porque, do Pacífico ao oceano Índico, passando pelas ilhas anglo-normandas, os lobos-do-mar sabiam esbanjar e, sobretudo, esconder as riquezas saqueadas nas ilhas mais ou menos obscuras e apartadas do continente. Várias razões o justificaram: nas viagens longas era necessário fazer algumas paragens. Mais ainda: há melhor esconderijo do que uma ilhota isolada para dissimular o ouro e as pedras preciosas? Quem se arriscaria por lá? O esconderijo mais seguro é uma buraco na areia perto de um coqueiro ou uma gruta submarina? Ainda hoje se encontram loucos furiosos que tentam encontrar os frutos desses furtos! Se Daniel Defoe foi um dos primeiros a escrever sobre o assunto, Robert Louis Stevenson foi, sem dúvida, o seu popularizador com a Ilha do Tesouro e o seu homem de perna de pau, LOng John Silver (que inspirou, também, uma sequela a Bjorn Larsson). Um livro repleto de violência, num ambiente de pesadelo frequentemente subestimado. Se a história marítima não tem sempre escala, a maior parte dos autores gosta, contudo, de insistir no mito da ilha como lugar do tesouro, de Rafael Sabatini (O Capitão Blood) a Patrick O `Brian (em The Mauritius Command e na série de aventuras de Jack Aubrey), passando por Robert Margerit (A Ilha dos Papagaios). Verdadeiro émulo de Surcouf (famoso «rei dos corsários» cujas façanhas foram narradas por Arthur Bernède), Louis Garneray contou, também, a sua experiência em numerosos obras, evocando os usos e costumes dos piratas das ilhas (Les naufragés du Saint-Antoine). Um livro não seria, então, a feliz incorporação na própria ficção dessa outra ficção que é o mapa do tesouro? Acresce que se a ilha pode esconder riquezas, também pode obviar à perda do pecúlio. Basta ler Défiscalisées, de Patrick Besson, romance ambientado em Maiorca, para eliminar qualquer dúvida. Será uma homenagem a esta imagem da «ilha-banca», transfigurada em paraíso fiscal, que leva autores franceses de sucesso (Houellebecq à cabeça) a procurarem esses refúgios insulares?.» (texto de Baptiste Liger; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)

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abril 13, 2007

As Ilhas como Metáfora: A Ilha Virgem

A Ilha Virgem
«Rousseau, em O Contrato Social, adverte o leitor de que só um «povo de deuses» seria capaz da democracia, e que um «governo tão perfeito» não «convém aos homens». Mas o seu pessimismo antropológico detém-se de forma bizarra nas fronteiras da ... Córsega, acerca da qual afirma ser o único país da Europa ainda «capaz em matéria de legislação». Se a Córsega escapa à melancolia do genebrino é pelo facto de ela ser um milagre onde estão reunidas as condições impossíveis de encontrar noutros lugares para um governo democrático: em primeiro lugar, trata-se de uma ilha; depois, é um pequeno Estado em que todos os membros são iguais, de costumes simples e indiferentes ao luxo ... Portanto, «o povo corso encontra-se no estado feliz que torna possível uma boa instituição ... São necessárias boas leis (...) para restabelecer a concórdia totalmente destituída pela tirania», declara o filósofo no Project de Constitution pour la Corse, redigido em 1763. Não é inocente que o eremita orgulhoso faça de uma ilha a sua utopia concreta; só um espaço liberto dos usos e costumes pode encarnar a ficção rousseauniana de um estado da natureza preservado da desgraça e da queda na História. Somente uma ilha, ainda virgem, permite abjurar as «leis artificiais inventadas pelos homens» em proveito das leis naturais que «comandam o coração e não tiranizam de forma alguma as vontades». Quando os continentes derivam e as fraquezas prosperam, a ilha é exaltada como um enclave, um paliativo, a força elementar de uma saúde perdida desde que o homem vive - e sobrevive - em sociedade. A ilha é a origem do mundo, a promessa de um novo começo e porto de abrigo das nossas esperanças perdidas. Salvaguardada da história pelo mar, a ilha encarna a idade de ouro do humano e, portanto, também a promessa da sua redenção» (texto de Raphael Enthoven; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)

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abril 09, 2007

As Ilhas como Metáfora: A Ilha da Utopia

A Ilha da Utopia
«Separadas dos continentes, salvos pelo oceano da nossa torpeza, as ilhas são o berço ideal da utopia. O filósofo Thomas More situa a sua Utopia numa ilha e não num continente: descreve um «país em lugar nenhum», um governo elevado onde desaparecem o egoísmo, a iniquidade, o belicismo, as disfunções e a depravação moral que conspurcam a Inglaterra do século XVI. Entre a esperança de outro lugar e a crítica do presente, a ilha é a metáfora geográfica dos amanhãs que cantam. É num calabouço, encarcerado entre quatro paredes, que o monge calabrês Tommaso Campanella redige A Cidade do Sol, uma nova utopia que localiza ... numa ilha, na ocorrência o Ceilão, um universo de duas por sete milhas, nos antípodas do mundo que o tortura. Heliaca pretende ser o oposto harmonioso de uma época decadente, uma cidade ordenada segundo os astros, uma paraíso sem conflitos, sem família, sem propriedade privada, nem riqueza, nem casamento verdadeiro. Os solários, essas «bestas de cérebro lodoso», são dirigidos por um monarca sábio, o «metafísico», assistido por um triunvirato («potência», «sabedoria», «amor») que regem o trabalho (quatro horas por dia), a sexualidade (eugenista e estritamente enquadrada), ou, ainda, a educação das crianças (retiradas aos pais a partir dos dois anos e educadas pelo Estado) ... Mas se as grandes utopias são insulares, nem todas são loucas ou funestas: assim, Marivaux, em A Ilha dos Escravos, eleva a comédia de costumes ao nível de uma reflexão sobre a servidão: senhores e criados desembarcam, após um naufrágio, numa cidade fundada por escravos revoltados, que os obrigam a trocar de condição, de roupas, até de nomes. Das peripécias que se seguem, Marivaux, tira a conclusão de que «a diferença de condição não passa de uma prova que os deuses nos lançam». Só uma ilha, isolada dos conjuntos, permite a suspensão dos usos e costumes, a inversão de perspectivas e um olhar liberto das convenções que nos cegam.» (texto de Raphael Enthoven; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)

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abril 02, 2007

As Ilhas como Metáfora: A Ilha Iniciática

A Ilha Iniciática
«A ilha é um lugar ideal para proceder à iniciação dos heróis. É o caso, designadamente de Creta: Zeus, o deus dos deuses, aí nasceu, longe dos palácios divinos, e aí foi educado e iniciado pelos Curetes nas faldas do monte Dicte, lembra Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias. Esta ilha abrigará mais tarde o famoso labirinto concebido por Dédalo, onde serrá apriosionado o Minotauro (criatura demoníaca meio-homem, meio-touro) e de onde o jovem Ícaro, ignorando as advertências paternas, se evadirá perecendo nas águas. Neste labirinto, ainda, Teseu terá de aprender a escapar às armadilhas antes de retornar como rei a Atenas ... Creta permanecerá, aliás, para os atenienses (que a venceram cerca do ano 1400 a.C.) a imagem do outro, derrotado e escarnecido, exercendo, no entanto, uma atracção inquietante. Se a ilha surge com tanta frequência como lugar dos ritos de passagem, é também, por simbolizar, por excelência, o local de difícil acesso. As iniciações que aí se realizam são, consequentemente, múltiplas. Intelectuais, antes do mais, como em A Ilha do Dia Antes, de Umberto Eco. Em 1643, Roberto de la Grive naufraga perto das ilhas Fiji. Único sobrevivente, sem saber nadar, não consegue chegar à ilha que avista do seu navio ... Essa costa no objecto de todos os seus fantasmas e Roberto, através dos seus monólogos, perdido num no man`s land mental e geográfico, reconstitui as mais diversas invenções do saber, permitindo a Eco criar uma enciclopédia da sua lavra. Em O Deus das Moscas, William Golding recompõe o mundo a partir de uma iniciação sangrenta: abandonados numa ilha após a Segunda Guerra Mundial, as crianças redesenham uma sociedade de adultos com as suas hierarquias, desvios e vítimas sacrificiais. Mas a insularidade é, igualmente, um lugar recôndito para outras educações, sentimentais desta feita: em A Ilha de Arturo, Elsa Morante descreve Procida, no golfo de Nápoles, e situa aí o território dos amores interditos e adolescentes, enquanto Mario Soldati, nas suas Lettere de Capri, evoca os amores adúlteros onde as lembranças e as imagens do ser amado se insinuam e esvanecem nos reflexos da Gruta Azul, aprendendo, também, a viver com a ausência.» (texto de Clémence Boulouque; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas).

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