janeiro 26, 2009

Breviário Mediterrânico (1)

Acaba de sair, na Quetzal, a reedição de uma belíssima obra esgotada há muito, e sobre a qual escrevi em tempos, e que agora se reproduz:
Na Antiguidade conta-se que a cada ponto cardeal correspondia uma côr. O Mar Vermelho correspondia ao Leste; o vermelho indicava o Leste. O Norte era assinalado pelo negro, como o Mar Negro. O Oeste é o branco, o branco do imenso mar interior, o mar de Mediteranski Brevijar (Breviário Mediterrânico), o livro solar, a epifania de Predrag Matvejevitch. Sei que a edição portuguesa, da Quetzal, de 1994, está esgotada há muito. Ouvi dizer em tempo que iria haver uma reedição, mas nem sinal. Comprei o livro nos anos 90 e depois perdi-o. Por ventos mediterrânicos, talvez o maestral, e após anos de tentativas falhadas, um dia dei de caras com ele num alfarrabista do Bairro Alto, que, aliás, já me levou a outras preciosidades desaparecidas. Enquanto não conseguia o livro em Portugal arranjei uma edição francesa da Fayard. Entretanto também o procurei na Croatia, em Dubrovnik, numa livraria da Placa Stradum, e em Rijeka, mas não havia. Entre nós a tradução para a Quetzal foi feita por Pedro Tamen a partir da versão francesa aprovada pelo autor. A obra que Matvejevitch escreveu em 1987 é simplesmente genial. É difícil de classificar, tanto que, já de si, é ela mesma um verdadeiro breviário de géneros, um livro com muitos livros dentro: romance, poesia, ensaio, narrativa de viagens, relato imaginário, registo real e fragmentado, escrita de divulgação científica, abordagem histórica, política e geográfica, tratado filosófico. Breviário Mediterrânico é composto por três partes: Breviário, Cartas e Glossário, as quais são no fundo três diferentes formas e tonalidades de tratar o mesmo assunto. A Introdução, intitulada Para uma Filologia do Mar, é de um outro grande andarilho europeu, Claudio Magris, que escreveu um ano antes, em 1986, Danúbio, outro livro também ele fabuloso, do fôlego e cariz deste Mediteranski Brevijar, só distinta na incidência geográfica e no itinerário. O Posfácio do livro tem como título Cenas de um Mundo Terráqueo e é de Robert Bréchon. Magris escreve na Introdução que a obra de Predrag se assemelha ao empreendimento do relojoeiro catalão (que Matvejevitch conhecera em Alexandria e que apaixonadamente, e contra uma falta exorbitante de dados, estava a reconstituir o catálogo da famosa biblioteca destruída pelo sultão Omar), no que mistura de rigor e de temeridade, de precisão científica e de epifania do infinito. Ainda Magris: «Que livro é este, que com requintada discrição desafia os géneros literários?

O Mediterrâneo de Matvejevitch, ele mesmo o diz, não é apenas o espaço histórico-cultural, estudado magistralmente e talvez definitivamente por Braudel, nem o espaço místico-lírico celebrado por Gide ou por Camus. Obra fascinante, que ao mesmo tempo tem algo de portulano, de léxico e de ensaio/romance assente numa absoluta fidelidade ao real, o livro de Matvejevitch pode levar a pensar, na sua total autonomia e na sua diversidade, em La Mer de Michelet, outro livro estranho e genial, em que o grande historiador, depois de ter sondado nos arquivos a história da França e a da Revolução, consagra a sua atenção infatigável à estratificação geológica das costas e aos faróis, às conchas e à flora oceânicas, às estações balneares e às histórias de sereias.» O registo de Matvejevitch é desconcertante. Prende-nos e envereda por caminhos que não esperaríamos. Detem-se no que julgamos acessório quando na verdade se trata do essencial, suspende-se nos pormenores, em cada grão de areia, em vez de se alargar nos sentidos latos e visíveis, leva-nos numa vista aérea, leve, a abarcar o mínimo de cada possibilidade. Magris determina (vale a pena seguir o texto): «lê o mundo, a realidade, os gestos e as entoações das pessoas, o estilo das capitanias, a meneira indefinível como a natureza se prolonga sub-repticiamente na história e na arte, como as formas das costas se vão reencontrar nas da arquitectura, a influência no traçado das fronteiras da cultura da oliveira, da extensão de uma religião ou da migração das enguias, as histórias e os destinos cuja lembrança é guardada pelos glossários náuticos e pelas línguas desaparecidas, a linguagem das ondas e a dos cais, as gírias e falares que mudam imperceptivelmente no espaço e no tempo». E remata em Para uma Filologia do Mar: «O potamólogo que, no livro Danúbio, tentou sobretudo exprimir a grande nostalgia do mar, e em especial do Adriático, inveja fraternalmente o talassólogo Matvejevitch; e alegra-me que o Danúbio se lance no mar, apesar de, infelizmente, o fazer no Mar Negro e não no Mediterrâneo». Por sua vez, Robert Bréchon escreve no Posfácio que o texto de Predrag é o equivalente, para a geografia, do que Marguerite Yourcenar fizera para a história ao recriar o interior da personagem Adriano (...) e situa-se na faixa estreita que permaneceu livre entre o discurso académico e o discurso «poetizante». E analisa a três partes do livro: «o Breviário é o catálogo dos tópicos de todos os discursos possíveis sobre o Mediterrâneo: portos, ilhas, ventos, correntes, costas, faróis, terrenos, línguas, utensílios, migrações, batalhas navais, etc. (...) Este texto apresenta-se ao mesmo tempo como uma suma de conhecimentos rigorosos e como o resumo de uma enciclopédia infinita. É escrito como um poema, numa prosa cheia de imagens, ritmada e, poderíamos dizer, rimada pelo retorno, no fim de cada fragmento, do vocábulo que esta repetição encantatória sacraliza até ao fim: «Mediterrâneo»; (...) as Cartas tornam concretamente visíveis os lugares mediterrânicos. A carta geográfica é um outro espaço da viagem, é uma viagem, e o autor por lá deambulou tanto ou mais que por terra ou por mar. (...) Por fim, o Glossário retoma todos os temas do Breviário e das Cartas, para explicar os termos, comentar os relatos, indicar as fontes, fornecer as referências, aludir até, aqui e além, às circunstâncias da composição do livro.»

janeiro 12, 2009

Irlanda: A Música (3)

Como se referiu aqui e aqui, na Irlanda, música, poesia, terra, mar e viagem são realidades inseparáveis, formando, cada uma delas, e todas, a nossa grande deslocação através da paisagem. É um tema recorrente em Seamus Heaney, esse, o do movimento que fazemos ao atravessar os vales e as costas a conduzir. Conduzir como forma de ligarmos um lugar ao outro, conduzir como acto de meditação e desnivelamento dos sentidos.

A música irlandesa, seja ela a de raíz marcadamente tradicional (o sean-nós), como em Liam O ´Flynn, nos Boys of the Lough ou nessa verdadeira lenda que são os The Chieftains, seja na sua vertente de ressurgimento transmultidisciplinar, onde se incluem as inesquecíveis sonoridades de fusão de Enya, dos Altan, Capercaillie e dos Clannad, seja, finalmente, na nova música e na Pop, com marcas de relevância mundial, como The Waterboys, The Pogues, os U2, Van Morrison (que em parceria com os The Chieftains é autor de um album histórico), The Cranberries e The Corrs, conta-nos, à semelhança da poesia, da literatura e da arte, uma história. Uma história de exílio, de esperança, de tempestades, de caminhos perdidos e rostos lembrados. Através dela perspassamos os olhos e os ouvidos pelas estrelas desaparecidas dos Celtas, pela sua marcha antiga através das pedras e dos túmulos, pelo sol a bater nas cruzes dos cruzamentos do Dhún na nGall, pelas costas agrestes nos Anais Irlandeses, inspirados pela visão parcelar de Tír na NÓg, a terra da juventude, e pelos espíritos das crianças que dançam na praia ao vento, como no poema de W.B.Yeats. As canções e as baladas falam por si mesmo e contam-nos histórias de deuses deitados ao longo de vastos campos de relva. Tempus Vernum ... Deora ar mo chroí . «Quando mais nada tiveres a dizer, conduz/um dia inteiro contornando a península./O céu tão alto como sobre uma pista,/a terra sem marcas que digam se chegamos,//sempre a caminho, mas sempre aquém de avistar terra./Ao sol-pôr, horizontes sorvem mar e colina,/o campo lavrado engole a branca empena/e estás de novo no escuro. Agora relembra//o brillho da areia, um tronco em silhueta,/aquela rocha que esfarrapava as ondas,/aves marinhas com pernas como andas,/ilhas navegando por entre a névoa,//e regressa a casa ainda sem nada p`ra dizer/a não ser que agora lerás qualquer paisagem/assim: a nitidez das coisas em suas formas,/água e terra definidas nos seus extremos

The Peninsula; poema de Seamus Heaney (de Door into the Dark, 1969); Trad. de Rui Carvalho Homem; Da Terra à Luz - Poemas 1966-1987; Relógio D`Água Editores: 1997)