março 29, 2007

As Ilhas como Metáfora: A Ilha Mãe

A Ilha Mãe
«E com os olhos cheios de lágrimas fitava o mar nunca vindimado. No Canto V da Odisseia, onde começa realmente o périplo de Ulisses - os quatro primeiros capítulos traçam o itenerário do seu filho Telémaco -, o herói não pára de interrogar o horizonte. Retido pela ninfa Calipso, generosa e apaixonada, sonha, ainda assim, com a sua Ítaca, a sua pátria, a sua ilha. Essa obsessão do regresso transformará para sempre Ítaca no símboço da mãe pátria. Ítaca, ilha matriz. O nome de Ulisses, invocado como a imagem do regresso feliz, está presente em Joaquim du Bellay, mas, igualmente, no quarto livro das Memórias d´além da Campa, de Chateaubriand. Entretanto, com o tempo, as trompetas de Il Ritorno di Ulisse in Patria (que ressoam na ópera de Monteverdi, em 1641) passaram a vibrar num tom bem diferente: na leitura feita por uma certa modernidade, o retorno torna-se sangrento. Assim, no seu Ulisses, peça de 1928, Nikos Kazantzakis descreve uma personagem ciclotímica totalmente apostada em massacrar os pretendentes - mesmo argumento em Gehart Hauptamann, dramaturgo alemão do período entre guerras. As leituras mais contemporâneas - e freudianas - da Odisseia contestam até a visão de uma fidelidade a uma terra e a uma família insusbtituíveis ... Jean Giono, em Aux origines de l´Odyssée (1938), sugere que essa longa errância foi forjada por Ulisses para justificar, a posteriori, a sua ausência a Penélope ... A Ilha-mãe está, ainda, no cerne de O Desprezo de Alberto Moravia: um jovem argumentista que trabalha numa adaptação da obra de Homero é testemunha do diferendo entre o produtor e o encenador, cujas leituras do texto são radicalmente opostas. Para um trata-se dum périplo iniciático, da travessia de desafio em desafio no fito de reeencontrar uma ilha matricial, enquanto o encenador defende que a Odisseia não passa da metáfora de um desamor. E é, precisamente, essa interpretação que subjaz, também, ao Ulisses de Joyce, com as deambulações de Leopold Bloom a menterem-no afastado da sua esposa, Molly.» (texto de Clémence Boulouque; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)

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março 25, 2007

Inutile Phare de la Nuit (3)

Quantas vezes uma linha nos levará em direcção aos lugares mais improváveis, como «os passos da nossa vida guiados também pela combinação de poucas palavras»?
«Durante muito tempo trouxe na memória uma frase de Chateaubriand: Inutile Phare de la Nuit. Creio que lhe atribuí sempre um poder de desencantado conforto como quando nos apegamos a algo que se revela um inutile phare de la nuit e, contudo, nos permite fazer alguma coisa apenas porque acreditávamos na sua luz: a força das ilusões. Na minha memória esta frase andava associada ao nome de uma ilha longínqua e improvável: Ile de Pico, inutile phare de la nuit.» (Antonio Tabucchi; Donna di Porto Pim e Altre Storie; Trad. de Maria Emília Marques Mano; Difel).
O que também pode levar, no fim da viagem, a um poema de Robert Louis Stevenson:
«Deixa que a tua alma encontre uma
Âncora neste mundo da matéria. Fundeia aqui o teu corpo -
Que desde já este espectáculo imutável seja
A gravura nos teus olhos; e quando soar a hora
E a verde paisagem escurecer de repente -
Os últimos, os que acompanharem o teu cavalo no sonho
Acompanharão o teu corpo morto
(An End of Travel. Stevenson, Robert Louis. Poemas. Trad. de José Agostinho Baptista; Lisboa: Assírio & Alvim, 2006)

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março 20, 2007

Inutile Phare de la Nuit (2)

À noite, em redor de Porto Pim, na Horta, depois das casas brancas e das tabernas onde Lucas Eduíno, embalado pela melopeia sincopada dos pézinhos e sapateias e pelo ardor lento do vinho «de cheiro», conta a sua história de destino e maldição aos turistas ou viajantes que por acaso ali passam, ouve-se, junto às pequenas fábricas de cachalotes abandonadas, ainda com os ganchos e anilhas ferrugentas, a canção perigosa e lânguida das moreias, «tão antiga como as ilhas», mágica e silenciosa como as águas negras da baía, ou o canto agudo e ancestral dos cachalotes a chamar-nos de um fundo escuro e impossível no oceano imenso, algures num qualquer ponto real ou imaginado, e que, de uma ou outra forma, nunca poderemos ver. Como nos diz Antonio Tabucchi, a certa altura, num momento maravilhoso desse magnífico livro que é Mulher de Porto Pim e Outras Histórias (Trad. de Maria Emília Marques Mano para a Difel): «Às vezes cantam, mas só para si, e o seu canto não é um chamamento, mas uma forma de lamento angustiado. Cansam-se depressa, e quando cai a noite estendem-se sobre as pequenas ilhas que os transportam e talvez adormeçam ou olhem para a lua. Vão-se embora deslizando em silêncio e percebe-se que são tristes».
Fiquemos com outras passagens de Donna di Porto Pim, a começar na ilha mais longínqua, o Corvo:
«O deus do Remorso e da Nostalgia é uma criança com cara de velho. O seu templo ergue-se na ilha mais distante, num vale defendido por montes inacessíveis, perto de um lago, numa zona desolada e selvagem. O vale está sempre coberto por uma bruma leve como um véu, há altas faias que o vento faz murmurar e é um lugar de uma grande melancolia. (...) Os homens vão visitá-lo vestidos de miseráveis capas e as mulheres cobertas de xailes escuros; e todos estão em silêncio e às vezes ouve-se chorar na noite, quando a lua inunda de prata o vale e os peregrinos, estendidos na relva, embalam o remorso da sua vida
«E assim cheguei mesmo ao cimo do promontório e enquanto, observando o mar infinito, já me estava a abandonar ao mal-estar que o desengano provoca, uma nuvem azul desceu sobre mim e arrebatou-me para um sonho: e sonhei que te escrevia esta carta, e que eu não era o grego que partiu em busca do Ocidente e mais não voltou, mas que estava apenas a sonhá-lo

E enquanto as pequenas baleias azuis se passeiam ao largo, o fragmento da história de Marcel, no embalo do barco a costejar São Jorge, e da mulher luminosa que sorri para ele, debaixo do sol:

«Deve ser porque tenho pensado muito em ti, continuou, nestas ilhas, no sol. Agora falava quase sussurrando como se falasse para si própria. Não fiz senão imaginar-te, durante todo esse tempo, choveu sempre, via-te sentado numa praia, penso que foi demasiado longo. O homem pegou-lhe na mão. Também para mim, disse, mas nas paraias estive pouco, o que mais vi foi a máquina de escrever. E depois chove também aqui, a cântaros. A mulher sorriu

E depois:

«De qualquer modo escrevi outras coisas, prosseguiu ele, estas ilhas são de um tédio mortal, para passar o tempo não há outro remédio senão escrever. E além disso queria confrontar-me com uma dimensão diferente, passei toda a vida a escrever ficção. A mim parece-me mais nobre, disse a mulher, pelo menos é mais gratuita, e portanto, como dizer?, mais leve ... Oh sim, riu o homem, a delicadeza: par délicatesse j`ai perdu ma vie. Mas a certa altura é preciso ter a coragem de se medir com a realidade, pelo menos com a realidade da nossa vida. E depois, olha, a gente está sedenta de vida realmente vivida, está cansada da fantasia dos romancistas sem fantasia. A mulher perguntou baixinho: são memórias?».

E outros fragmentos: os que decidem partir e não voltar; a Horta; os acasos; as baleias adormecidas, a ilha absoluta do Pico; o regresso de uma caça; a história fantástica de Lucas Eduíno, em Porto Pim; os ventos sobre tudo o resto: Inutile Phare de la Nuit:

«Rupert tem o cabelo muito ruivo, sardas, uma cara patusca de Danny Kaye. Talvez me tenha dito que era escocês ou talvez eu o considere como tal devido à sua fisionomia. Em Londres trabalhava numa companhia de navegação: anos e anos sentado a uma mesa, com a luz eléctrica acesa, a sonhar os portos longínquos donde chegavam mercadorias exóticas. Assim, um dia pediu a liquidação, vendeu tudo o que tinha e comprou este barco. (...) Breezy foi com ele e agora vivem no barco. Seja benvindo a nossa casa, dizem rindo. Breezy tem um rosto franco muito cordial, um esplêndido sorriso e traz um vestido comprido às flores como se tivesse de enfrentar um garden-party e não uma travessia do Atlântico

«Para os navegantes que param na Horta é norma deixar no paredão do molhe um desenho, um nome, uma data. É um muro com uns cem metros de comprimento, onde se sobrepõem desenhos de barcos, cores de bandeiras, números, frases. Refiro uma entre muitas: Nat, de Brisbane. Vou para onde o vento me levar

«É esbelto, muito afuselado, foi construído com material de primeira qualidade. Deve ter navegado bastante. A este porto chegou por acaso. De resto as viagens são um acaso. Chama-se Nota Azul

«Imaginei que os dias de excessiva bonança e de sol intenso, quando sobre o oceano pesa um calor compacto, serão os raros momentos concedidos às baleias para regressar com a memória fisiológica à sua ancestralidade terrestre. É-lhes necessário uma concentração tão intensa e total que caem num sono profundo, como uma morte aparente: e assim flutuando, como brilhantes troncos cegos, conseguem recordar, como em sonho, um passado remotíssimo (...).»

«A ilha do Pico é um cone vulcânico que emerge de repente do oceano: não é mais do que uma alta montanha abrupta pousada sobre a água. Tem três aldeias: Madalena, São Roque e Lajes; o resto é rocha de lava, onde cresce de vez em quando um raquítico bacelo e alguns ananases silvestres

«Talvez porque ambos estão em extinção, digo-lhe por fim em voz baixa, vocês e as baleias, penso que foi por isso. Provavelmente adormeceu, não responde nada. Mas entre os dedos brilha a ponta do cigarro. A vela chia de forma lúgrube, os corpos imóveis no sono são pequenos montes escuros e a chalupa desliza sobre a água como um barco fantasma

«Querem a viola de arame que dá este som de feira melancólica, e eu canto-lhes modinhas pirosas onde a rima é sempre a mesma, mas tanto faz, eles não percebem e, como vês, bebem gin tónico. Mas tu, o que é que procuras, que todas as noites vens aqui? Tu és curioso e procuras outra coisa, porque é a segunda vez que me convidas a beber, mandas vir vinho «de cheiro» como se fossses dos nossos, és estranjeiro e finges falar como nós, mas bebes pouco e depois ficas calado e esperas que fale eu. Dissestes que és escritor e, no fundo, talvez a tua profissão tenha alguma coisa a ver com a minha

Inutile Phare de la Nuit: o destino em Porto Pim. Voltamos à história de Rupert e Breezy, que os ventos levaram à Horta e que agora os fazem partir de novo:

«Os copos batem mum brinde à viagem. Oxalá tenham bons ventos, é o que lhes desejo, agora e sempre. Rupert corre a portinha de uma estante e introduz uma bobina na aparelhagem estereofónica. É o Concerto K 271 para piano e orquestra de Mozart, e só neste momento compreendo porque o barco se chama Amadeus. (...) Penso que Rupert e Breezy atravessam os mares acompanhados pelos cravos e pelas melodias mozartianas e a coisa parece-me de uma estranha beleza, talvez porque sempre associei a música à ideia da terra firme, do teatro ou de uma sala com isolamento sonoro e na penumbra. A música adquire um tom solene e envolve-nos. Os copos estão vazios, levantamo-nos e abraçamo-nos. Rupert põe o motor a trabalhar, meto-me pela escadinha e num pulo estou no molhe. Cai uma luz macia sobre o aglomerado de casas de Porto Pim. O Amadeus dá uma volta e parte velozmente. Breezy vai ao leme e Rupert está a içar a vela. Fico a acenar com a mão até que o Amadeus, já com todas as velas pandas, alcança o largo

Inutile Phare de la Nuit ...

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março 15, 2007

Inutile Phare de la Nuit (1)

Se já aqui (1 e 2), nestas passagens, abordámos o glossário e a epifania do imenso Mediterrâneo branco de Mediteranski Brevijar (Breviário Mediterrânico), do croata, nascido em Mostar, na Herzegovina, Predrag Matvejevitch, não podemos deixar de passar por um outro homem do mediterrâneo, também ele andarilho, desses e doutros cantos do mundo, nascido mais ou menos na mesma longitude, sensivelmente ao meio do conjunto de toda a bacia mediterrânica, bem no centro no Rinascimiento, o italiano, natural de Pisa (1943), Antonio Tabucchi e por uma das suas obras mais emblemáticas, que, com os anos, se foi tornando, para muitos de nós, uma espécie de segredo precioso, um livro clássico e fundamental, uma outra viagem pessoal: Donna di Porto Pim e Altre Storie (Mulher de Porto Pim e outras Histórias), escrito em 1983. Se Breviário Mediterrânico é, à maneira de Michelet, um avanço em relação ao estudo exaustivo e quase definitivo de Braudel sobre o Mediterrâneo, porque parte da sua realidade histórica, cultural e polícia para a inventar e nomear nas entrelinhas o que remanesce como um espécie de rede mais importante e perene, podemos considerar Donna di Porto Pim uma extensão, mais fragmentária e respirada, de Mau Tempo no Canal, de Nemésio, de As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, e, mais recentemente, de Açores, O Segredo das Ilhas, de João de Melo. Não é que os livros de Matvejevitch e de Tabucchi sejam semelhantes, que não são. Ou melhor: não são, mas também são. Na verdade, à semelhança do Breviário, também poderemos considerar o livro de Tabucchi um breviário de géneros literários. Também estão lá a abordagem histórica, e enumeração e a descrição diminuta das personagens e dos lugares, a efabulação poética, a narrativa de viagens, a atenção aos pormenores imperceptíveis, as transcrições e os apêndices, a extensão da realidade para a ficção, a metáfora e a alusão. E igualmente a viragem, já operada com La Mer, de Michelet (que Claudio Magris refere a propósito de Brevijar), das grandes impressões históricas, geográficas e políticas para a importância da topografia das costas, das tonalidades dos mares interiores ou mais afastados, dos faróis e tempestades, da forma como os corpos das ilhas emergem no oceano a fazer lembrar o dorso escuro e rochoso das baleias ou o silêncio dos homens que à noite se sentam à mesa das esplanadas a entoar sapateias e a ouvir lendas misteriosas de desaparecimentos no mar e de mulheres que partem tão repentinamente como chegam, como relatos inacabados. Também a narrativa de Tabucchi, como a de Matvejevitch, nos enche a memória com uma leve penugem solar e quente, onde os olhos brilham, com a mesma intensidade do sol a pique, inundados de ilhas e promontórios, de planaltos e portos onde nada há a fazer senão «escrever» e ir vendo os barcos chegar e partir e acompanhá-los ao longo dos paredões a deixarem um rastro onde ecoam histórias impossíveis e aventuras esquecidas. Em Matvejevitch, somos levados por cima, no imenso Mediterrâneo branco, a perdermo-nos desde as areias da Tunísia e da Líbia às águas calmas da Ístria eslovena ou croata, passando por todas as ilhas e arquipélagos; em Tabucchi vamos também desde o alto, pelo imenso Atlântico verde-azul, através das inefáveis e belísimas ilhas que formam, como uma miragem esfumada e um reduto guardado da memória, o arquipélago real e sonhado dos Açores.
Donna di Porto Pim e Altre Storie está entre nós publicado pela Difel com o título de Mulher de Porto Pim. São 104 páginas inesquecíveis e que nos levam a uma viagem real e imaginária de que nunca sairemos. A tradução esteve a cargo de Maria Emília Marques Mano e julgo que o livro já vai na 7ª ou 8ª edições, o que é claramente revelador do poder, quase onírico, de uma obra, que, embora, de certa forma discreta, soube atravessar os anos, entranhar-se em cada um dos seus leitores e alargá-los, como uma rede cada vez mais consistente de apaixonados que derivam num circuito restrito, a que voltam sempre. Eu tenho dois exemplares, um dos quais uma 2ª edição comprada, como convém, em Hangra do Heroísmo, já nos idos de 1990. Mulher de Porto Pim é um texto lindíssimo, uma verdadeira variação da memória, uma enorme metáfora e uma mitologia particular e secreta sobre os Açores; um livro que me tem acompanhado ao longo de mais de dezassete anos e que é e será um dos livros da minha vida. Os temas de que trata, se é que de temas realmente se tratam, são logo adiantados por Tabucchi no seu Prólogo: as pequenas baleias azuis que se passeiam ao largo dos Açores nos dias de maior bonança; o relato de uma caça ao cachalote ao largo do Pico; os naufrágios, «que na sua acepção de actos falhados e malogros parecem igualmente metafóricos»; a vida e a morte de Antero de Quental, que se suicida em Ponta Delgada em 11 de Setembro de 1891; as vidas que se perdem pelo caminho e as que foram levadas pelos ventos às costas do Faial; os fragmentos das impressões e descoberta das ilhas, com referências a Alberto I, Príncipe do Mónaco, que no final do século 19 passou pelos Açores a bordo da sua Hirondelle, a Chateaubriand, Michelet, Melville e Joshua Slocum, o primeiro navegador solitário à volta do mundo e que em Julho de 1895 arribou à Horta empurrado pelos ventos; esse lugar mítico, ponto de encontro de todos os navegantes, velejadores e viajantes do mundo, «destinatário de mensagens precárias e de sorte incerta», que é o "Peter`s Bar", na Horta; os livros e os mapas; os lugares e as evocações de jornadas, como o «trecho intitulado Sonho em forma de carta, devido em parte a uma leitura de Platão e em parte aos solavancos de uma lenta camioneta que ia da Horta a Almoxarife»; e a história fantástica de «Lucas Eduíno, que matou com o arpão a mulher que julgava sua, em Porto Pim», que não sabemos se real, imaginada ou um pouco das duas, contada, à noite, entre a toada dos pézinhos e chama-ritas, aos turistas numa taberna da baía de Porto Pim, na Horta.
Tabucchi começa assim Mulher de Porto Pim e, à semelhança do que sucede com Mediteranki Brevijar, de Matvejevitch, ficamos logo com o espírito de todo o texto que se seguirá daí para a frente:
«Depois de ter velejado durante muitos dias e muitas noites, compreendi que o Ocidente não tem fim, antes continua a deslocar-se connosco, e que podemos persegui-lo quanto quisermos que nunca o alcançamos. Assim é o mar ignoto que fica para além das Colunas, sem fim e sempre igual, do qual emergem, como pequenas espinha dorsal de um colosso desaparecido, pequenas cristas de ilhas, nós de rocha perdidos no azul
E um pouco mais adiante:
«O seu Panteão não é habitado por deuses como os nossos que presidem ao céu, à terra, ao mar, aos infernos, aos bosques, às searas, à guerra e à paz e às coisas dos homens. São, pelo contrário, deuses do espírito, do sentimento, e da paixão; os principais são nove, como as ilhas, e cada um tem o seu templo numa ilha diferente
Donna di Porto Pim e Altre Storie é um relato assombroso de uma viagem aos Açores, uma história repleta de breves referências, fragmentos, transcrições, e uma história de amor. Uma história de silêncios, como o silêncio que à noite, de tão vasto e escuro, enche a distância de ecos e vozes junto à baía de Porto Pim, quando caminhamos ao longo do golfo até ao outro lado, a seguir ao promontório, junto às habitações desactivadas da pesca baleeira. É um canto arrastado, «uma melodia primeiro baixa e lânguida e depois aguda, que vem do fundo do mar ou das almas perdidas na noite, um canto tão antigo como as ilhas, que traz consigo uma maldição ou um destino». E imanente a todo esse canto, como uma linha que subjaz em cada parágrafo do texto ou que adivinhamos mais tarde ou mais cedo, encontramos a morte, seja ela na descrição de um cachalote moribundo, «ruína de um mastodôntico animal que se nos apresenta tão majestoso e aterrador como o naufrágio de um transatlântico», seja no fim anunciado de Antero, em Ponta Delgada, ou na história de traição de Lucas Eduíno, a narrativa de um amor total e sangrento, passada em Porto Pim, um registo do destino, marcadamente violento, mas melancolicamente belo. Com Mulher de Porto Pim começamos e acabamos nos Açores. E neles, nesse imenso Atlântico verde-azul, julgamos poder ter descoberto o Ocidente acabado. Mulher de Porto Pim é um livro sobre os Açores de cada um de nós, sobre as memórias que cada um tem e guarda das ilhas, e que não deve contar. Porque não devemos falar muitos dos Açores, mas mantê-los para nós, como um segredo intransmissível a que regressamos sempre. Todos precisamos de ilusões; Chatwin dizia que todos precisamos de uma busca como desculpa para viver. As vistas do Pico, a estrada da Madalena às Lajes, as águas lisas junto a São Roque, os planaltos de São Jorge e a Urzelina, as costas macias do Faial ou a travessia para as Flores, com o Corvo ao fundo, podem muito bem ser essa busca e essa desculpa. Mas perdoem-me, insisto: não falem muito dos Açores; partilhem-nos apenas com aqueles que procuram os lugares improváveis, os que permanecem como os últimos lugares deste mundo: os inutile phare de la nuit.
Como escreveu Tabucchi: «Durante muito tempo trouxe na memória uma frase de Chateaubriand: Inutile phare de la nuit. Creio que lhe atribuí sempre um poder de desencantado conforto como quando nos apegamos a algo que se revela um inutile phare de la nuit e, contudo, nos permite fazer alguma coisa apenas porque acreditávamos na sua luz: a força das ilusões. Na minha memória esta frase andava associada ao nome de uma ilha longínqua e improvável: Ile de Pico, inutile phare de la nuit

Passagem: Açores; Espaço Tallassa

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março 13, 2007

Paisagem: Pajottenland: Bruegel (5)

março 09, 2007

Paisagem: Pajottenland: Bruegel (4)

Pajottenland, província de Vlaams-Brabant, Vlaanderen, Fev/Mar.2007 (Photos by RC)

Ainda e por último, as árvores. A Pajottenland, as árvores de Pieter Bruegel, l `Ancien, 500 anos depois, e os lugares da sua sequência de trabalhos intitulada De Maanden, aqui nos meses de Fevereiro e Março, como em De sondere tag (La journée sombre): Vollezele, Gooik, Leenik, Ninove, Gaasbeck, Oetingan, Enghien, St Pieters-Lieeuw.

Passagem: Pajottenland Blog

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março 07, 2007

Paisagem: Pajottenland: Bruegel (3)

De nestenrover, (Huile sur bois,1568), Pieter Bruegel, l´Ancien

Pieter Bruegel, l `Ancien pintou De nestenrover (Le dénicheur), que traduziríamos para O camponês e o pilha ninhos, um ano antes da sua morte, em 1569. Em comparação com as suas representações mais antigas, esta obra dá a impressão de que poderia ter sido pintado por um outro artista. Na verdade, a paisagem montanhosa das suas primeiras imagens, porventura, como referímos, influenciadas pela sua viajem a Itália e aos Alpes, é agora substituída pelo imenso território plano dos campos, típico, aliás, da Vlaanderen (Flandres) e da Pajottenland, a vastidão do panorama cede perante a patente aproximação a determinados elementos da natureza e a tradicional enorme multiplicidade de figuras, como por exemplo sucede em Landschap met ijsschaatsen en de vogelknip (Paysage d ´hiver avec patineurs et trappe aux oiseaux) e De volkstelling te Betlehem (Le dénombrement de Bethléem), é drásticamente reduzida, mas, em contrafundo, apresentada de uma maneira monumental. A sua concepção da paisagem, que é, como temos visto, a marca relevante da sua obra, aparece, aqui, através da forma como, nomeadamente, a luz é captada através das árvores, formal e tecnicamente inovada. Efectivamente, com De nestenrover (Le dénicheur), Bruegel contribuíu decididamente para o desenvolvimento e a importância da pintura de paisagem.

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março 02, 2007

Paisagem: Pajottenland: Bruegel (2)

Pajottenland, província de Vlaams-Brabant, Vlaanderen, Fev/Mar.2007 (Photos by RC)
Pieter Bruegel, l ´Ancien susteve a tradição dos pintores Flamengos Primitivos dos século 15, como Van Eyck e Hans Memling, mas foi além dela ao transmitir-nos nas suas representações, quer sejam as gravuras ou os óleos sobre tela, a vastidão larga das paisagens e a importância significante de cada pormenor. Com Bruegel a paisagem passa para primeiro plano, assume o comando da descrição e o movimento da cena, na qual são registadas as tragédias e as comédias humanas até ao detalhe diminuto, que muitas vezes coloca enigmas na interpretação ou suscita a dificuldade de estabelecer conexões, como se algumas das suas imagens fossem uma imensa parábola de códigos desconhecidos. Com os seis trabalhos da sua série De Maanden (Os meses), pintados entre 1564-1565, designadamente com os dois deles que aqui vimos, respectivamente De Sondere Tag e De jagers in de sneeuw, Bruegel sugeriu-nos a transição do tempo, a passagem das estações do ano e, nelas, a mudança dos sentimentos e actividades humanas. Fê-lo através da imagética da paisagem, colocando-a no primeiro plano e à frente da observação, e deu-nos a perceber que subjacente a cada uma das suas cenas e representações por vezes independentes se desenrola a ideia maior e central: a de que o tempo, o triunfo de Saturno, mais tarde ou mais cedo resgatará os panoramas e o mundo. Com De Sondere Tag, um dos trabalhos daquela série, Bruegel transmite-nos esta ideia de efemeridade, esta passagem contínua, situando-nos nos meses de Fevereiro e Março, e, por isso, na transição do Inverno (De jagers in de sneeuw) para a Primavera, naquelas que são as paisagens da Pajottenland e as aldeias da Brabant, na Flandres. As árvores que vemos no plano central de De Sondere Tag são uma constante nos trabalhos de De Maanden, como se por elas, logo à primeira, sem ser preciso mais nada, percebêssemos a transição das estações e das emoções humanas. Das árvores partimos para o resto. Como nestas, aqui, que são, na verdade, uma das presenças mais impressivas e distintas da Pajottenland e da província de Vlaams-Brabant, por vezes com formas e silhuetas que apenas distam das dos quadros de Bruegel nos séculos. As árvores são as mesmas, o tempo é que não.

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