Se já aqui (
1 e
2), nestas passagens, abordámos o glossário e a epifania do
imenso Mediterrâneo branco de
Mediteranski Brevijar (
Breviário Mediterrânico), do croata, nascido em Mostar, na Herzegovina,
Predrag Matvejevitch, não podemos deixar de passar por um outro homem do mediterrâneo, também ele andarilho, desses e doutros cantos do mundo, nascido mais ou menos na mesma longitude, sensivelmente ao meio do conjunto de toda a bacia mediterrânica, bem no centro no
Rinascimiento, o italiano, natural de Pisa (1943),
Antonio Tabucchi e por uma das suas obras mais emblemáticas, que, com os anos, se foi tornando, para muitos de nós, uma espécie de segredo precioso, um livro clássico e fundamental, uma outra viagem pessoal:
Donna di Porto Pim e Altre Storie (
Mulher de Porto Pim e outras Histórias), escrito em 1983.
Se Breviário Mediterrânico é, à maneira de Michelet, um avanço em relação ao estudo exaustivo e quase definitivo de Braudel sobre o Mediterrâneo, porque parte da sua realidade histórica, cultural e polícia para a inventar e nomear nas entrelinhas o que remanesce como um espécie de rede mais importante e perene, podemos considerar
Donna di Porto Pim uma extensão, mais fragmentária e respirada, de
Mau Tempo no Canal, de Nemésio, de
As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, e, mais recentemente, de
Açores, O Segredo das Ilhas, de João de Melo. Não é que os livros de Matvejevitch e de Tabucchi sejam semelhantes, que não são. Ou melhor: não são, mas também são. Na verdade, à semelhança do
Breviário, também poderemos considerar o livro de Tabucchi um
breviário de géneros literários. Também estão lá a abordagem histórica, e enumeração e a descrição diminuta das personagens e dos lugares, a efabulação poética, a narrativa de viagens, a atenção aos pormenores imperceptíveis, as transcrições e os apêndices, a extensão da realidade para a ficção, a metáfora e a alusão. E igualmente a viragem, já operada com
La Mer, de Michelet (que Claudio Magris refere a propósito de
Brevijar), das grandes impressões históricas, geográficas e políticas para a importância da topografia das costas, das tonalidades dos mares interiores ou mais afastados, dos faróis e tempestades, da forma como os corpos das ilhas emergem no oceano a fazer lembrar o dorso escuro e rochoso das baleias ou o silêncio dos homens que à noite se sentam à mesa das esplanadas a entoar
sapateias e a ouvir lendas misteriosas de desaparecimentos no mar e de mulheres que partem tão repentinamente como chegam, como relatos inacabados. Também a narrativa de Tabucchi, como a de Matvejevitch, nos enche a memória com uma leve penugem solar e quente, onde os olhos brilham, com a mesma intensidade do sol a pique, inundados de ilhas e promontórios, de planaltos e portos onde nada há a fazer senão «escrever» e ir vendo os barcos chegar e partir e acompanhá-los ao longo dos paredões a deixarem um rastro onde ecoam histórias impossíveis e aventuras esquecidas. Em Matvejevitch, somos levados por cima, no
imenso Mediterrâneo branco, a perdermo-nos desde as areias da Tunísia e da Líbia às águas calmas da Ístria eslovena ou croata, passando por todas as ilhas e arquipélagos; em Tabucchi vamos também desde o alto, pelo
imenso Atlântico verde-azul, através das inefáveis e belísimas ilhas que formam, como uma miragem esfumada e um reduto guardado da memória, o arquipélago real e sonhado dos Açores.
Donna di Porto Pim e Altre Storie está entre nós publicado pela
Difel com o título de
Mulher de Porto Pim. São 104 páginas inesquecíveis e que nos levam a uma viagem real e imaginária de que nunca sairemos. A tradução esteve a cargo de Maria Emília Marques Mano e julgo que o livro já vai na 7ª ou 8ª edições, o que é claramente revelador do poder, quase onírico, de uma obra, que, embora, de certa forma discreta, soube atravessar os anos, entranhar-se em cada um dos seus leitores e alargá-los, como uma rede cada vez mais consistente de apaixonados que derivam num circuito restrito, a que voltam sempre. Eu tenho dois exemplares, um dos quais uma 2ª edição comprada, como convém, em Hangra do Heroísmo, já nos idos de 1990.
Mulher de Porto Pim é um texto lindíssimo, uma verdadeira variação da memória, uma enorme metáfora e uma mitologia particular e secreta sobre os Açores; um livro que me tem acompanhado ao longo de mais de dezassete anos e que é e será um dos livros da minha vida. Os temas de que trata, se é que de temas realmente se tratam, são logo adiantados por Tabucchi no seu
Prólogo: as pequenas baleias azuis que se passeiam ao largo dos Açores nos dias de maior bonança; o relato de uma caça ao cachalote ao largo do Pico; os naufrágios, «que na sua acepção de actos falhados e malogros parecem igualmente metafóricos»; a vida e a morte de Antero de Quental, que se suicida em Ponta Delgada em 11 de Setembro de 1891; as vidas que se perdem pelo caminho e as que foram levadas pelos ventos às costas do Faial; os fragmentos das impressões e descoberta das ilhas, com referências a Alberto I, Príncipe do Mónaco, que no final do século 19 passou pelos Açores a bordo da sua
Hirondelle, a Chateaubriand, Michelet, Melville e Joshua Slocum, o primeiro navegador solitário à volta do mundo e que em Julho de 1895 arribou à Horta empurrado pelos ventos; esse lugar mítico, ponto de encontro de todos os navegantes, velejadores e viajantes do mundo, «destinatário de mensagens precárias e de sorte incerta», que é o
"Peter`s Bar", na Horta; os livros e os mapas; os lugares e as evocações de jornadas, como o «trecho intitulado
Sonho em forma de carta, devido em parte a uma leitura de Platão e em parte aos solavancos de uma lenta camioneta que ia da Horta a Almoxarife»; e a história fantástica de «Lucas Eduíno, que matou com o arpão a mulher que julgava sua, em Porto Pim», que não sabemos se real, imaginada ou um pouco das duas, contada, à noite, entre a toada dos
pézinhos e
chama-ritas, aos turistas numa taberna da baía de Porto Pim, na Horta.
Donna di Porto Pim e Altre Storie é um relato assombroso de uma viagem aos Açores, uma história repleta de breves referências, fragmentos, transcrições, e uma história de amor. Uma história de silêncios, como o silêncio que à noite, de tão vasto e escuro, enche a distância de ecos e vozes junto à baía de Porto Pim, quando caminhamos ao longo do golfo até ao outro lado, a seguir ao promontório, junto às habitações desactivadas da pesca baleeira. É um canto arrastado, «uma melodia primeiro baixa e lânguida e depois aguda, que vem do fundo do mar ou das almas perdidas na noite, um canto tão antigo como as ilhas, que traz consigo uma maldição ou um destino». E imanente a todo esse canto, como uma linha que subjaz em cada parágrafo do texto ou que adivinhamos mais tarde ou mais cedo, encontramos a morte, seja ela na descrição de um cachalote moribundo, «ruína de um mastodôntico animal que se nos apresenta tão majestoso e aterrador como o naufrágio de um transatlântico», seja no fim anunciado de Antero, em Ponta Delgada, ou na história de traição de Lucas Eduíno, a narrativa de um amor total e sangrento, passada em Porto Pim, um registo do destino, marcadamente violento, mas melancolicamente belo.
Com Mulher de Porto Pim começamos e acabamos nos Açores. E neles, nesse imenso Atlântico verde-azul, julgamos poder ter descoberto o Ocidente acabado. Mulher de Porto Pim é um livro sobre os Açores de cada um de nós, sobre as memórias que cada um tem e guarda das ilhas, e que não deve contar. Porque não devemos falar muitos dos Açores, mas mantê-los para nós, como um segredo intransmissível a que regressamos sempre. Todos precisamos de ilusões; Chatwin dizia que todos precisamos de uma busca como desculpa para viver. As vistas do Pico, a estrada da Madalena às Lajes, as águas lisas junto a São Roque, os planaltos de São Jorge e a Urzelina, as costas macias do Faial ou a travessia para as Flores, com o Corvo ao fundo, podem muito bem ser essa busca e essa desculpa. Mas perdoem-me, insisto: não falem muito dos Açores; partilhem-nos apenas com aqueles que procuram os lugares improváveis, os que permanecem como os últimos lugares deste mundo: os inutile phare de la nuit. Como escreveu Tabucchi
: «Durante muito tempo trouxe na memória uma frase de Chateaubriand: Inutile phare de la nuit. Creio que lhe atribuí sempre um poder de desencantado conforto como quando nos apegamos a algo que se revela um inutile phare de la nuit e, contudo, nos permite fazer alguma coisa apenas porque acreditávamos na sua luz: a força das ilusões. Na minha memória esta frase andava associada ao nome de uma ilha longínqua e improvável: Ile de Pico, inutile phare de la nuit.»