junho 26, 2007

Imenso Mediterrâneo Branco (1)

Na Antiguidade conta-se que a cada ponto cardeal correspondia uma côr. O Mar Vermelho correspondia ao Leste; o vermelho indicava o Leste. O Norte era assinalado pelo negro, como o Mar Negro. O Oeste é o branco, o branco do imenso mar interior, o mar de Mediteranski Brevijar (Breviário Mediterrânico), o livro solar, a epifania de Predrag Matvejevitch. Sei que a edição portuguesa, da Quetzal, de 1994, está esgotada há muito. Ouvi dizer em tempo que iria haver uma reedição, mas nem sinal. Comprei o livro nos anos 90 e depois perdi-o. Por ventos mediterrânicos, talvez o maestral, e após anos de tentativas falhadas, um dia dei de caras com ele num alfarrabista do Bairro Alto, que, aliás, já me levou a outras preciosidades desaparecidas. Enquanto não conseguia o livro em Portugal arranjei uma edição francesa da Fayard. Entretanto também o procurei na Croatia, em Dubrovnik, numa livraria da Placa Stradum, e em Rijeka, mas não havia. Entre nós a tradução para a Quetzal foi feita por Pedro Tamen a partir da versão francesa aprovada pelo autor. A obra que Matvejevitch escreveu em 1987 é simplesmente genial. É difícil de classificar, tanto que, já de si, é ela mesma um verdadeiro breviário de géneros, um livro com muitos livros dentro: romance, poesia, ensaio, narrativa de viagens, relato imaginário, registo real e fragmentado, escrita de divulgação científica, abordagem histórica, política e geográfica, tratado filosófico. Breviário Mediterrânico é composto por três partes: Breviário, Cartas e Glossário, as quais são no fundo três diferentes formas e tonalidades de tratar o mesmo assunto. A Introdução, intitulada Para uma Filologia do Mar, é de um outro grande andarilho europeu, Claudio Magris, que escreveu um ano antes, em 1986, Danúbio, outro livro também ele fabuloso, do fôlego e cariz deste Mediteranski Brevijar, só distinta na incidência geográfica e no itinerário. O Posfácio do livro tem como título Cenas de um Mundo Terráqueo e é de Robert Bréchon. Magris escreve na Introdução que a obra de Predrag se assemelha ao empreendimento do relojoeiro catalão (que Matvejevitch conhecera em Alexandria e que apaixonadamente, e contra uma falta exorbitante de dados, estava a reconstituir o catálogo da famosa biblioteca destruída pelo sultão Omar), no que mistura de rigor e de temeridade, de precisão científica e de epifania do infinito. Ainda Magris: «Que livro é este, que com requintada discrição desafia os géneros literários? O Mediterrâneo de Matvejevitch, ele mesmo o diz, não é apenas o espaço histórico-cultural, estudado magistralmente e talvez definitivamente por Braudel, nem o espaço místico-lírico celebrado por Gide ou por Camus. Obra fascinante, que ao mesmo tempo tem algo de portulano, de léxico e de ensaio/romance assente numa absoluta fidelidade ao real, o livro de Matvejevitch pode levar a pensar, na sua total autonomia e na sua diversidade, em La Mer de Michelet, outro livro estranho e genial, em que o grande historiador, depois de ter sondado nos arquivos a história da França e a da Revolução, consagra a sua atenção infatigável à estratificação geológica das costas e aos faróis, às conchas e à flora oceânicas, às estações balneares e às histórias de sereias.» O registo de Matvejevitch é desconcertante. Prende-nos e envereda por caminhos que não esperaríamos. Detem-se no que julgamos acessório quando na verdade se trata do essencial, suspende-se nos pormenores, em cada grão de areia, em vez de se alargar nos sentidos latos e visíveis, leva-nos numa vista aérea, leve, a abarcar o mínimo de cada possibilidade. Magris determina (vale a pena seguir o texto): «lê o mundo, a realidade, os gestos e as entoações das pessoas, o estilo das capitanias, a meneira indefinível como a natureza se prolonga sub-repticiamente na história e na arte, como as formas das costas se vão reencontrar nas da arquitectura, a influência no traçado das fronteiras da cultura da oliveira, da extensão de uma religião ou da migração das enguias, as histórias e os destinos cuja lembrança é guardada pelos glossários náuticos e pelas línguas desaparecidas, a linguagem das ondas e a dos cais, as gírias e falares que mudam imperceptivelmente no espaço e no tempo». E remata em Para uma Filologia do Mar: «O potamólogo que, no livro Danúbio, tentou sobretudo exprimir a grande nostalgia do mar, e em especial do Adriático, inveja fraternalmente o talassólogo Matvejevitch; e alegra-me que o Danúbio se lance no mar, apesar de, infelizmente, o fazer no Mar Negro e não no Mediterrâneo». Por sua vez, Robert Bréchon escreve no Posfácio que o texto de Predrag é o equivalente, para a geografia, do que Marguerite Yourcenar fizera para a história ao recriar o interior da personagem Adriano (...) e situa-se na faixa estreita que permaneceu livre entre o discurso académico e o discurso «poetizante». E analisa a três partes do livro: «o Breviário é o catálogo dos tópicos de todos os discursos possíveis sobre o Mediterrâneo: portos, ilhas, ventos, correntes, costas, faróis, terrenos, línguas, utensílios, migrações, batalhas navais, etc. (...) Este texto apresenta-se ao mesmo tempo como uma suma de conhecimentos rigorosos e como o resumo de uma enciclopédia infinita. É escrito como um poema, numa prosa cheia de imagens, ritmada e, poderíamos dizer, rimada pelo retorno, no fim de cada fragmento, do vocábulo que esta repetição encantatória sacraliza até ao fim: «Mediterrâneo»; (...) as Cartas tornam concretamente visíveis os lugares mediterrânicos. A carta geográfica é um outro espaço da viagem, é uma viagem, e o autor por lá deambulou tanto ou mais que por terra ou por mar. (...) Por fim, o Glossário retoma todos os temas do Breviário e das Cartas, para explicar os termos, comentar os relatos, indicar as fontes, fornecer as referências, aludir até, aqui e além, às circunstâncias da composição do livro.»
Predrag Matvejevitch começa assim: é o primeiro parágrafo, dá-nos logo aí o tom de todo o texto:
«Não sabemos ao certo até onde vai o Mediterrâneo, nem que parte do litoral ocupa, nem onde acaba, tanto em terra como no mar. Para os Gregos, de Leste para Oeste, estendia-se do Fásis, no Cáucaso, até às Colunas de Hércules; consideravam implícita a sua fronteira natural a Norte e às vezes não se preocupavam com os seus limites a Sul. Os sábios da Antiguidade ensinavam que os confins do Mediterrâneo se situam onde a oliveira se detém. Nem sempre nem em toda a parte é assim: há lugares na costa que não são marítimos, ou que o são menos que outros, mais afastados dela. Há lugares em que o continente não se alia ao mar, em que se revela difícil a concordância entre eles. Noutros pontos, o carácter mediterrânico abrange mais vastas porções do continente, penetra-as mais com a sua influência. O Mediterâneo não é apenas uma geografia
E mais à frente: para as ilhas - como o será para as penínsulas, os golfos, as capitanias, as costas, os mosteiros:
«As ilhas são lugares peculiares. Classificam-se de acordo com critérios diversos: a sua distância da costa, a natureza do canal que dela as separa, a possibilidade de lá chegar a remos ou a nado. É nelas que melhor se percebe como o mar aproxima e como divide. As ilhas distinguem-se igualmente pela imagem que oferecem ou pela impressão que deixam: umas parecem flutuar ou afundar-se, outras parecem ancoradas ou petrificadas; estas não passam de fragmentos incompletos, arrancados à costa, aquelas largaram a tempo o continente e, independentes, bastam-se a si mesmas. Algumas permanecem numa desordem e num abandono mais ou menos completos, enquanto noutras tudo está arrumado, a ponto de se acreditar que é possível fazer reinar uma ordem ideal. Atribuem-se às ilhas estados de alma ou características humanas: também elas são solitárias, tranquilas, sequiosas, nuas, desertas, desconhecidas, malditas, afortunadas, às vezes felizes ou abençoadas. Não se agrupam apenas segundo as suas semelhanças, mas também de acordo com as suas conexões. A Antiguidade oferece-nos dois modelos de divisão: as Espórades e as Cíclades no mar Egeu (este tipo de ordenação serviu de modelo a certas ordens monásticas, os cenobitas, por exemplo, ou os anacoretas). As Baleares com as Pitiúsas, as Kornat adriáticas, o pequeno arquipélago das Elafitas, perto de Dubrovnik, o das ilhas de Hyères entre o golfo do Leão e a «Côte d`Azur» e, mais abaixo, Querquena no Sul da Tunísia, as ilhas Lipari, ou ainda o arquipélago toscano entre o mar Tirreno e a costa da Ligúria, são agrupados de modo semelhante. Certas ilhas carregadas de história, Malta, por exemplo, com a sua ordem de cavalaria, a Sicília, com um glorioso passado, e talvez a Córsega, apelidada de «ilha da beleza», não aguentam generalizações. Os ilhéus, em especial quando não possuem água potável nem dolinas, são os mais abandonados: os que não se integram num arquipélago perdem o seu lugar no protocolo da costa e ficam para sempre órfãos, celibatários ou dissidentes. Os escolhos que enxameiam as proximidades das ilhas inspiraram relatos de horror e de fantasmas: no Mediterrâneo, mais que em qualquer outro lado, acredita-se em contos
Matvejevitch é croata, nasceu a cerca de 50 km da belíssima costa da Dalmácia, em Mostar, na Herzegovina, ao que não será de forma nenhuma alheio o pendor do Breviário Mediterrânico. «Em Mostar, diz ele, sopram os ventos do mar. Debaixo da velha ponte turca voam guinchos de uma espécie marinha; muitas vezes, pelo meio dia, o mistral». É professor em importantes universidades da Europa, eminente especialista em estudos românicos da Universidade de Zagreb, autor dessa brilhante obra de crítica historiográfica que é Pour une poétique de l´événement (1979), uma grande voz da Mitteleuropa e das planícies croato-panónias, um dos mais distintíssimos intelectuais europeus do nosso tempo e, afinal, inventor, como diz Bréchon, de uma nova arte de escrever, com este magistral Mediteranski Brevijar. Em criança, quando vivia em Sibenik, na costa dálmata, deixava-se fascinar pelos rios e pelas costas mediterrânicas e a si mesmo perguntava porque é que a faixa litoral é por vezes tão estreita e tão curta, e porque é que as gentes que vivem na costa têm outros hábitos e cantam outras canções. Matvejevitch é ainda autor de outros textos fundamentais, tais como Epistolaire de L´Autre Europe, de 1993 (entre nós: Epistulário Russo, também publicado pela Quetzal, em 1995, igualmente com tradução de Pedro Tamen e Introdução de Robert Bréchon), L´île Méditerranée/Photographies de Mimmo Jodice, que recomendo vivamente e pode ler-se como uma espécie de súmula de Breviário Mediterrânico, e esse não menos belíssimo périplo poético por uma Veneza latente e invisível, um outro autêntico breviário, no tom e no conteúdo, mais do que obrigatório para os amantes da cidade do Adriático, intitulado Druga Venecija (L´Autre Venise), que se pode encontrar também na Fayard. Mediteranski Brevijar é um livro como deviam ser muitos livros: cada palavra e frase pressentem uma infinitude de outras coisas, uma evocação, uma enumeração, uma análise e um itinerário exaustivo. Passa por nós como o vento que nos branqueia a cara à vista do arquipélago das Elafitas, em Dubrovnik, ou com os reflexos do brilho da água quente de Rovinj, na Ístria. Breviário Mediterrânico é uma viagem como deveria ser cada viagem: completa, com o seu «alegre saber», e gradualmente mais leve e parecida com um fantasma de si própria: na memória e na nostalgia. Como um imenso mediterrâneo branco.

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março 15, 2007

Inutile Phare de la Nuit (1)

Se já aqui (1 e 2), nestas passagens, abordámos o glossário e a epifania do imenso Mediterrâneo branco de Mediteranski Brevijar (Breviário Mediterrânico), do croata, nascido em Mostar, na Herzegovina, Predrag Matvejevitch, não podemos deixar de passar por um outro homem do mediterrâneo, também ele andarilho, desses e doutros cantos do mundo, nascido mais ou menos na mesma longitude, sensivelmente ao meio do conjunto de toda a bacia mediterrânica, bem no centro no Rinascimiento, o italiano, natural de Pisa (1943), Antonio Tabucchi e por uma das suas obras mais emblemáticas, que, com os anos, se foi tornando, para muitos de nós, uma espécie de segredo precioso, um livro clássico e fundamental, uma outra viagem pessoal: Donna di Porto Pim e Altre Storie (Mulher de Porto Pim e outras Histórias), escrito em 1983. Se Breviário Mediterrânico é, à maneira de Michelet, um avanço em relação ao estudo exaustivo e quase definitivo de Braudel sobre o Mediterrâneo, porque parte da sua realidade histórica, cultural e polícia para a inventar e nomear nas entrelinhas o que remanesce como um espécie de rede mais importante e perene, podemos considerar Donna di Porto Pim uma extensão, mais fragmentária e respirada, de Mau Tempo no Canal, de Nemésio, de As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, e, mais recentemente, de Açores, O Segredo das Ilhas, de João de Melo. Não é que os livros de Matvejevitch e de Tabucchi sejam semelhantes, que não são. Ou melhor: não são, mas também são. Na verdade, à semelhança do Breviário, também poderemos considerar o livro de Tabucchi um breviário de géneros literários. Também estão lá a abordagem histórica, e enumeração e a descrição diminuta das personagens e dos lugares, a efabulação poética, a narrativa de viagens, a atenção aos pormenores imperceptíveis, as transcrições e os apêndices, a extensão da realidade para a ficção, a metáfora e a alusão. E igualmente a viragem, já operada com La Mer, de Michelet (que Claudio Magris refere a propósito de Brevijar), das grandes impressões históricas, geográficas e políticas para a importância da topografia das costas, das tonalidades dos mares interiores ou mais afastados, dos faróis e tempestades, da forma como os corpos das ilhas emergem no oceano a fazer lembrar o dorso escuro e rochoso das baleias ou o silêncio dos homens que à noite se sentam à mesa das esplanadas a entoar sapateias e a ouvir lendas misteriosas de desaparecimentos no mar e de mulheres que partem tão repentinamente como chegam, como relatos inacabados. Também a narrativa de Tabucchi, como a de Matvejevitch, nos enche a memória com uma leve penugem solar e quente, onde os olhos brilham, com a mesma intensidade do sol a pique, inundados de ilhas e promontórios, de planaltos e portos onde nada há a fazer senão «escrever» e ir vendo os barcos chegar e partir e acompanhá-los ao longo dos paredões a deixarem um rastro onde ecoam histórias impossíveis e aventuras esquecidas. Em Matvejevitch, somos levados por cima, no imenso Mediterrâneo branco, a perdermo-nos desde as areias da Tunísia e da Líbia às águas calmas da Ístria eslovena ou croata, passando por todas as ilhas e arquipélagos; em Tabucchi vamos também desde o alto, pelo imenso Atlântico verde-azul, através das inefáveis e belísimas ilhas que formam, como uma miragem esfumada e um reduto guardado da memória, o arquipélago real e sonhado dos Açores.
Donna di Porto Pim e Altre Storie está entre nós publicado pela Difel com o título de Mulher de Porto Pim. São 104 páginas inesquecíveis e que nos levam a uma viagem real e imaginária de que nunca sairemos. A tradução esteve a cargo de Maria Emília Marques Mano e julgo que o livro já vai na 7ª ou 8ª edições, o que é claramente revelador do poder, quase onírico, de uma obra, que, embora, de certa forma discreta, soube atravessar os anos, entranhar-se em cada um dos seus leitores e alargá-los, como uma rede cada vez mais consistente de apaixonados que derivam num circuito restrito, a que voltam sempre. Eu tenho dois exemplares, um dos quais uma 2ª edição comprada, como convém, em Hangra do Heroísmo, já nos idos de 1990. Mulher de Porto Pim é um texto lindíssimo, uma verdadeira variação da memória, uma enorme metáfora e uma mitologia particular e secreta sobre os Açores; um livro que me tem acompanhado ao longo de mais de dezassete anos e que é e será um dos livros da minha vida. Os temas de que trata, se é que de temas realmente se tratam, são logo adiantados por Tabucchi no seu Prólogo: as pequenas baleias azuis que se passeiam ao largo dos Açores nos dias de maior bonança; o relato de uma caça ao cachalote ao largo do Pico; os naufrágios, «que na sua acepção de actos falhados e malogros parecem igualmente metafóricos»; a vida e a morte de Antero de Quental, que se suicida em Ponta Delgada em 11 de Setembro de 1891; as vidas que se perdem pelo caminho e as que foram levadas pelos ventos às costas do Faial; os fragmentos das impressões e descoberta das ilhas, com referências a Alberto I, Príncipe do Mónaco, que no final do século 19 passou pelos Açores a bordo da sua Hirondelle, a Chateaubriand, Michelet, Melville e Joshua Slocum, o primeiro navegador solitário à volta do mundo e que em Julho de 1895 arribou à Horta empurrado pelos ventos; esse lugar mítico, ponto de encontro de todos os navegantes, velejadores e viajantes do mundo, «destinatário de mensagens precárias e de sorte incerta», que é o "Peter`s Bar", na Horta; os livros e os mapas; os lugares e as evocações de jornadas, como o «trecho intitulado Sonho em forma de carta, devido em parte a uma leitura de Platão e em parte aos solavancos de uma lenta camioneta que ia da Horta a Almoxarife»; e a história fantástica de «Lucas Eduíno, que matou com o arpão a mulher que julgava sua, em Porto Pim», que não sabemos se real, imaginada ou um pouco das duas, contada, à noite, entre a toada dos pézinhos e chama-ritas, aos turistas numa taberna da baía de Porto Pim, na Horta.
Tabucchi começa assim Mulher de Porto Pim e, à semelhança do que sucede com Mediteranki Brevijar, de Matvejevitch, ficamos logo com o espírito de todo o texto que se seguirá daí para a frente:
«Depois de ter velejado durante muitos dias e muitas noites, compreendi que o Ocidente não tem fim, antes continua a deslocar-se connosco, e que podemos persegui-lo quanto quisermos que nunca o alcançamos. Assim é o mar ignoto que fica para além das Colunas, sem fim e sempre igual, do qual emergem, como pequenas espinha dorsal de um colosso desaparecido, pequenas cristas de ilhas, nós de rocha perdidos no azul
E um pouco mais adiante:
«O seu Panteão não é habitado por deuses como os nossos que presidem ao céu, à terra, ao mar, aos infernos, aos bosques, às searas, à guerra e à paz e às coisas dos homens. São, pelo contrário, deuses do espírito, do sentimento, e da paixão; os principais são nove, como as ilhas, e cada um tem o seu templo numa ilha diferente
Donna di Porto Pim e Altre Storie é um relato assombroso de uma viagem aos Açores, uma história repleta de breves referências, fragmentos, transcrições, e uma história de amor. Uma história de silêncios, como o silêncio que à noite, de tão vasto e escuro, enche a distância de ecos e vozes junto à baía de Porto Pim, quando caminhamos ao longo do golfo até ao outro lado, a seguir ao promontório, junto às habitações desactivadas da pesca baleeira. É um canto arrastado, «uma melodia primeiro baixa e lânguida e depois aguda, que vem do fundo do mar ou das almas perdidas na noite, um canto tão antigo como as ilhas, que traz consigo uma maldição ou um destino». E imanente a todo esse canto, como uma linha que subjaz em cada parágrafo do texto ou que adivinhamos mais tarde ou mais cedo, encontramos a morte, seja ela na descrição de um cachalote moribundo, «ruína de um mastodôntico animal que se nos apresenta tão majestoso e aterrador como o naufrágio de um transatlântico», seja no fim anunciado de Antero, em Ponta Delgada, ou na história de traição de Lucas Eduíno, a narrativa de um amor total e sangrento, passada em Porto Pim, um registo do destino, marcadamente violento, mas melancolicamente belo. Com Mulher de Porto Pim começamos e acabamos nos Açores. E neles, nesse imenso Atlântico verde-azul, julgamos poder ter descoberto o Ocidente acabado. Mulher de Porto Pim é um livro sobre os Açores de cada um de nós, sobre as memórias que cada um tem e guarda das ilhas, e que não deve contar. Porque não devemos falar muitos dos Açores, mas mantê-los para nós, como um segredo intransmissível a que regressamos sempre. Todos precisamos de ilusões; Chatwin dizia que todos precisamos de uma busca como desculpa para viver. As vistas do Pico, a estrada da Madalena às Lajes, as águas lisas junto a São Roque, os planaltos de São Jorge e a Urzelina, as costas macias do Faial ou a travessia para as Flores, com o Corvo ao fundo, podem muito bem ser essa busca e essa desculpa. Mas perdoem-me, insisto: não falem muito dos Açores; partilhem-nos apenas com aqueles que procuram os lugares improváveis, os que permanecem como os últimos lugares deste mundo: os inutile phare de la nuit.
Como escreveu Tabucchi: «Durante muito tempo trouxe na memória uma frase de Chateaubriand: Inutile phare de la nuit. Creio que lhe atribuí sempre um poder de desencantado conforto como quando nos apegamos a algo que se revela um inutile phare de la nuit e, contudo, nos permite fazer alguma coisa apenas porque acreditávamos na sua luz: a força das ilusões. Na minha memória esta frase andava associada ao nome de uma ilha longínqua e improvável: Ile de Pico, inutile phare de la nuit

Passagem: Açores; Espaço Tallassa

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fevereiro 20, 2007

Imenso Mediterrâneo Branco (2)

Predrag Matvejevitch atravessou o imenso mar interior, o imenso Oeste branco do Mediterrâneo de um lado a outro, desde as planícies croato-panónias às areias da Tunísia, da vertente dos Apeninos às gargantas do Montenegro, acima de Kotor, das Cíclades gregas ao arquipélago italiano das Lipari, do norte da Líbia ao litoral turco, passando pela Síria, de Marselha a Alexandria, de Atenas a Roma, do mediterrâneo católico ao mediterrâneo ortodoxo, da cultura da oliveira ao scirocco, entre o Fásis e as Colunas de Hércules. Desenhou curvas, contou as fronteiras, seguiu as cartas e os mapas, orientou-se pelo voo das gaivotas e pela espessura da espuma das ondas, subiu aos mosteiros, aos meteoros da Grécia, avançou para dentro das terras, viu como algumas são ainda mais marítimas do que outras que se encontram na orla, deteve-se nas capitanias, nos pontões abandonados, traçou os limites, as rotas, ouviu as fábulas, as superstições e as línguas antigas, regionais, costeiras, cheirou as redes e as tintas das embarcações, reparou nos molhes a esfumarem-se no azul e parou por fim, em oração, a contemplar o que viu. De tudo, e por tudo, ofereceu-nos esse itinerário indefinível, essa mistura de poema, romance e ensaio, de investigação histórica e tratado de filosofia, esse breviário barroco e infinito, a obra inesquecível, leve e solar como mar que a envolve, que é Mediteranski Brevijar. Robert Bréchon, que assina o Posfácio, intitulado, Cenas de um Mundo Terráqueo, escreve: «Predrag Matvejevitch percorreu do mesmo passo o espaço e o tempo do Mediterrâneo. Viu com os seus próprios olhos grande parte das suas margens. Armazenou grande parte do saber que se foi acumulando desde que há quatro mil anos ali há homens que navegam, pescam, pensam, fazem a guerra, constroem cidades. O que caracteriza o Mediterrâneo é uma relação singular entre a terra, o mar e o homem». Claudio Magris, que introduz o livro, concretiza: «A cultura e a história mergulham directamente nas coisas, nas pedras, nas rugas dos rostos humanos, no gosto do vinho e do azeite, na cor das ondas. Matvejevitch tenta agarrar o Mediterrâneo, abandonar-se ao encanto desta palavra, mas também circunscrever rigorosamente o seu sentido, traçar limites e fronteiras. Segue as diversas rotas mediterrânicas, as do tráfico do âmbar e das peregrinações dos Judeus sefardins, da área da vinha e do curso dos rios; as fronteiras tornam-se então movediças e ondulantes: embora coerentes e concêntricas, desenham curvas ideais como as linhas isóbaras ou como as cristas das ondas».
Rovinj, Ístria, Croatia, Set.2005 (photo by RC)
Predrag, o geógrafo, o historiador, o narrador, o poeta, por vezes deixa de lá estar. Deixa-nos sós, parte por cima das areias que se estendem das praias do Norte de África à Córsega e reaparece subitamente nos rochedos isolados do mar e na Républica da Ragusa ou em Veneza. Enquanto nos deixa sós, deixa-nos com tudo o que é imenso em tão pouco. Deixa-nos com cada palavra e frase, com cada voz que repete até à exaustão a aventura mediterrânica. Não podemos pretender mais. Predrag encarna a própria cor e ondulação do mediterrâneo, que, como ele mesmo refere, têm a sua natureza e consistências próprias consoante cada corrente ou ponto indefinido do mar. Temos a sensação de que abandona os navios e as embarcações, as cidades e dos territórios marcados para se retirar para os faróis, de onde nos envia notícias e relatos de uma espécie de desaparecimento. Matvejevitch torna-se um viajante em todos os sentidos, mesmo que um deles o seja apenas à roda do seu quarto. Magris assentua, na sua Introdução (Para uma Filologia do Mar): «Ao lermos este breviário temos por vezes a impressão de que aquele que fala é um desses homens mencionados no próprio livro, que viveram diante do mar, guardando faróis e realizando dicionários de marinharia. Mas hoje em dia todo o verdadeiro Ulisses deve vestir, além da sua blusa do marinheiro, um roupão, como ainda não há muito escrevia Giorgio Bergamini, e aventurar-se pelas sua biblioteca dentro, tanto ou até mais que por entre as ilhas perdidas; o Ulisses contemporâneo deve ser um perito na distanciação do mito e no exílio da natureza, uma explorador da ausência e da deserção da vida verdadeira». O Mediterrâneo pode pois tornar-se uma biografia, um interminável palimpsesto, um movimento que toma conta de nós e nos conduz para lugares incertos, aonde somos acompanhados por gaivotas solitárias, nas quais veremos notícias de uma esperança ou de desastres, com o Mediterrâneo estendendo-se a toda a volta cada vez mais branco.
Retomemos, neste sentido, Matvejevitch, em um dos momentos iniciais de Mediteranski Brevijar (ainda acompanhando a edição portuguesa da Quetzal, com tradução de Pedro Tamen):
«O lugar donde partimos importa menos que aquele aonde chegamos. Porque ora todos os mares parecem formar um só, sobretudo quando é longa a viagem, ora cada uma deles nos parece ser outro mar. Partamos, por exemplo, do Adriático. Daqui, o litoral setentrional, desde Málaga ao Bósforo, está mais próximo e é mais acessível. No Sul, de Haifa até Ceuta, tornam-se mais raras as baías e os portos. Percorri de ilha em ilha o mar Jónio e o mar Egeu, entre Cíclades e Espórades, em busca das suas semelhanças e das suas diferenças. Comparei a Sicília e a Córsega, Maiorca e Minorca. Não fiz escala em todas as costas. Demorei-me mais tempo nos lugares onde os rios desaguam. É difícil conhecer todo o Mediterrâneo.»

Depois, daí para a frente, quanto mais conhecemos mais nos perdemos. Então, como qualquer memória, lugar ou visitação, e nos momentos em que um lado luminoso nos esquece em direcção a um outro que registámos na nossa consciência, o Mediterrâneo adquire para nós e para todos os que nele viveram e morreram o carácter de uma deriva contínua, de uma metáfora.

E se quisermos, porque a tal iriam ter, mais tarde ou cedo, os seguimentos que poderíamos sugerir para a linha seguinte, pela qual seríamos conduzidos ao princípio ou ao fim, consoante a perspectiva ou o momento: também o carácter de um destino, tantas vezes associado a um ponto cardeal ou a uma latitude no horizonte:

«A gente do Norte assimila muitas vezes Sul e Mediterrâneo: qualquer coisa a atrai para ele, mesmo quando permanece apegada à sua terra natal. Mais que a simples necessidade de um sol quente e de uma luz mais viva. Não sei se é permitido qualificar isto de «fé no Sul». É possível uma pessoa, independentemente do lugar onde nasceu e onde vive, tornar-se mediterrânica. A mediterraneidade não se herca, adquire-se. É uma distinção, não uma vantagem. Não se trata apenas de história ou de tradições, de geografia ou de raízes, de memória ou de crenças: o Mediterrâneo é também um destino

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fevereiro 16, 2007

Imenso Mediterrâneo Branco (1)

Na Antiguidade conta-se que a cada ponto cardeal correspondia uma côr. O Mar Vermelho correspondia ao Leste; o vermelho indicava o Leste. O Norte era assinalado pelo negro, como o Mar Negro. O Oeste é o branco, o branco do imenso mar interior, o mar de Mediteranski Brevijar (Breviário Mediterrânico), o livro solar, a epifania de Predrag Matvejevitch. Sei que a edição portuguesa, da Quetzal, de 1994, está esgotada há muito. Ouvi dizer em tempo que iria haver uma reedição, mas nem sinal. Comprei o livro nos anos 90 e depois perdi-o. Por ventos mediterrânicos, talvez o maestral, e após anos de tentativas falhadas, um dia dei de caras com ele num alfarrabista do Bairro Alto, que, aliás, já me levou a outras preciosidades desaparecidas. Enquanto não conseguia o livro em Portugal arranjei uma edição francesa da Fayard. Entretanto também o procurei na Croatia, em Dubrovnik, numa livraria da Placa Stradum, e em Rijeka, mas não havia. Entre nós a tradução para a Quetzal foi feita por Pedro Tamen a partir da versão francesa aprovada pelo autor. A obra que Matvejevitch escreveu em 1987 é simplesmente genial. É difícil de classificar, tanto que, já de si, é ela mesma um verdadeiro breviário de géneros, um livro com muitos livros dentro: romance, poesia, ensaio, narrativa de viagens, relato imaginário, registo real e fragmentado, escrita de divulgação científica, abordagem histórica, política e geográfica, tratado filosófico. Breviário Mediterrânico é composto por três partes: Breviário, Cartas e Glossário, as quais são no fundo três diferentes formas e tonalidades de tratar o mesmo assunto. A Introdução, intitulada Para uma Filologia do Mar, é de um outro grande andarilho europeu, Claudio Magris, que escreveu um ano antes, em 1986, Danúbio, outro livro também ele fabuloso, do fôlego e cariz deste Mediteranski Brevijar, só distinta na incidência geográfica e no itinerário. O Posfácio do livro tem como título Cenas de um Mundo Terráqueo e é de Robert Bréchon. Magris escreve na Introdução que a obra de Predrag se assemelha ao empreendimento do relojoeiro catalão (que Matvejevitch conhecera em Alexandria e que apaixonadamente, e contra uma falta exorbitante de dados, estava a reconstituir o catálogo da famosa biblioteca destruída pelo sultão Omar), no que mistura de rigor e de temeridade, de precisão científica e de epifania do infinito. Ainda Magris: «Que livro é este, que com requintada discrição desafia os géneros literários? O Mediterrâneo de Matvejevitch, ele mesmo o diz, não é apenas o espaço histórico-cultural, estudado magistralmente e talvez definitivamente por Braudel, nem o espaço místico-lírico celebrado por Gide ou por Camus. Obra fascinante, que ao mesmo tempo tem algo de portulano, de léxico e de ensaio/romance assente numa absoluta fidelidade ao real, o livro de Matvejevitch pode levar a pensar, na sua total autonomia e na sua diversidade, em La Mer de Michelet, outro livro estranho e genial, em que o grande historiador, depois de ter sondado nos arquivos a história da França e a da Revolução, consagra a sua atenção infatigável à estratificação geológica das costas e aos faróis, às conchas e à flora oceânicas, às estações balneares e às histórias de sereias.» O registo de Matvejevitch é desconcertante. Prende-nos e envereda por caminhos que não esperaríamos. Detem-se no que julgamos acessório quando na verdade se trata do essencial, suspende-se nos pormenores, em cada grão de areia, em vez de se alargar nos sentidos latos e visíveis, leva-nos numa vista aérea, leve, a abarcar o mínimo de cada possibilidade. Magris determina (vale a pena seguir o texto): «lê o mundo, a realidade, os gestos e as entoações das pessoas, o estilo das capitanias, a meneira indefinível como a natureza se prolonga sub-repticiamente na história e na arte, como as formas das costas se vão reencontrar nas da arquitectura, a influência no traçado das fronteiras da cultura da oliveira, da extensão de uma religião ou da migração das enguias, as histórias e os destinos cuja lembrança é guardada pelos glossários náuticos e pelas línguas desaparecidas, a linguagem das ondas e a dos cais, as gírias e falares que mudam imperceptivelmente no espaço e no tempo». E remata em Para uma Filologia do Mar: «O potamólogo que, no livro Danúbio, tentou sobretudo exprimir a grande nostalgia do mar, e em especial do Adriático, inveja fraternalmente o talassólogo Matvejevitch; e alegra-me que o Danúbio se lance no mar, apesar de, infelizmente, o fazer no Mar Negro e não no Mediterrâneo». Por sua vez, Robert Bréchon escreve no Posfácio que o texto de Predrag é o equivalente, para a geografia, do que Marguerite Yourcenar fizera para a história ao recriar o interior da personagem Adriano (...) e situa-se na faixa estreita que permaneceu livre entre o discurso académico e o discurso «poetizante». E analisa a três partes do livro: «o Breviário é o catálogo dos tópicos de todos os discursos possíveis sobre o Mediterrâneo: portos, ilhas, ventos, correntes, costas, faróis, terrenos, línguas, utensílios, migrações, batalhas navais, etc. (...) Este texto apresenta-se ao mesmo tempo como uma suma de conhecimentos rigorosos e como o resumo de uma enciclopédia infinita. É escrito como um poema, numa prosa cheia de imagens, ritmada e, poderíamos dizer, rimada pelo retorno, no fim de cada fragmento, do vocábulo que esta repetição encantatória sacraliza até ao fim: «Mediterrâneo»; (...) as Cartas tornam concretamente visíveis os lugares mediterrânicos. A carta geográfica é um outro espaço da viagem, é uma viagem, e o autor por lá deambulou tanto ou mais que por terra ou por mar. (...) Por fim, o Glossário retoma todos os temas do Breviário e das Cartas, para explicar os termos, comentar os relatos, indicar as fontes, fornecer as referências, aludir até, aqui e além, às circunstâncias da composição do livro.»
Predrag Matvejevitch começa assim: é o primeiro parágrafo, dá-nos logo aí o tom de todo o texto:
«Não sabemos ao certo até onde vai o Mediterrâneo, nem que parte do litoral ocupa, nem onde acaba, tanto em terra como no mar. Para os Gregos, de Leste para Oeste, estendia-se do Fásis, no Cáucaso, até às Colunas de Hércules; consideravam implícita a sua fronteira natural a Norte e às vezes não se preocupavam com os seus limites a Sul. Os sábios da Antiguidade ensinavam que os confins do Mediterrâneo se situam onde a oliveira se detém. Nem sempre nem em toda a parte é assim: há lugares na costa que não são marítimos, ou que o são menos que outros, mais afastados dela. Há lugares em que o continente não se alia ao mar, em que se revela difícil a concordância entre eles. Noutros pontos, o carácter mediterrânico abrange mais vastas porções do continente, penetra-as mais com a sua influência. O Mediterâneo não é apenas uma geografia
E mais à frente: para as ilhas - como o será para as penínsulas, os golfos, as capitanias, as costas, os mosteiros:
«As ilhas são lugares peculiares. Classificam-se de acordo com critérios diversos: a sua distância da costa, a natureza do canal que dela as separa, a possibilidade de lá chegar a remos ou a nado. É nelas que melhor se percebe como o mar aproxima e como divide. As ilhas distinguem-se igualmente pela imagem que oferecem ou pela impressão que deixam: umas parecem flutuar ou afundar-se, outras parecem ancoradas ou petrificadas; estas não passam de fragmentos incompletos, arrancados à costa, aquelas largaram a tempo o continente e, independentes, bastam-se a si mesmas. Algumas permanecem numa desordem e num abandono mais ou menos completos, enquanto noutras tudo está arrumado, a ponto de se acreditar que é possível fazer reinar uma ordem ideal. Atribuem-se às ilhas estados de alma ou características humanas: também elas são solitárias, tranquilas, sequiosas, nuas, desertas, desconhecidas, malditas, afortunadas, às vezes felizes ou abençoadas. Não se agrupam apenas segundo as suas semelhanças, mas também de acordo com as suas conexões. A Antiguidade oferece-nos dois modelos de divisão: as Espórades e as Cíclades no mar Egeu (este tipo de ordenação serviu de modelo a certas ordens monásticas, os cenobitas, por exemplo, ou os anacoretas). As Baleares com as Pitiúsas, as Kornat adriáticas, o pequeno arquipélago das Elafitas, perto de Dubrovnik, o das ilhas de Hyères entre o golfo do Leão e a «Côte d`Azur» e, mais abaixo, Querquena no Sul da Tunísia, as ilhas Lipari, ou ainda o arquipélago toscano entre o mar Tirreno e a costa da Ligúria, são agrupados de modo semelhante. Certas ilhas carregadas de história, Malta, por exemplo, com a sua ordem de cavalaria, a Sicília, com um glorioso passado, e talvez a Córsega, apelidada de «ilha da beleza», não aguentam generalizações. Os ilhéus, em especial quando não possuem água potável nem dolinas, são os mais abandonados: os que não se integram num arquipélago perdem o seu lugar no protocolo da costa e ficam para sempre órfãos, celibatários ou dissidentes. Os escolhos que enxameiam as proximidades das ilhas inspiraram relatos de horror e de fantasmas: no Mediterrâneo, mais que em qualquer outro lado, acredita-se em contos.»

Matvejevitch é croata, nasceu a cerca de 50 km da belíssima costa da Dalmácia, em Mostar, na Herzegovina, ao que não será de forma nenhuma alheio o pendor do Breviário Mediterrânico. «Em Mostar, diz ele, sopram os ventos do mar. Debaixo da velha ponte turca voam guinchos de uma espécie marinha; muitas vezes, pelo meio dia, o mistral». É professor em importantes universidades da Europa, eminente especialista em estudos românicos da Universidade de Zagreb, autor dessa brilhante obra de crítica historiográfica que é Pour une poétique de l´événement (1979), uma grande voz da Mitteleuropa e das planícies croato-panónias, um dos mais distintíssimos intelectuais europeus do nosso tempo e, afinal, inventor, como diz Bréchon, de uma nova arte de escrever, com este magistral Mediteranski Brevijar. Em criança, quando vivia em Sibenik, na costa dálmata, deixava-se fascinar pelos rios e pelas costas mediterrânicas e a si mesmo perguntava porque é que a faixa litoral é por vezes tão estreita e tão curta, e porque é que as gentes que vivem na costa têm outros hábitos e cantam outras canções. Matvejevitch é ainda autor de outros textos fundamentais, tais como Epistolaire de L´Autre Europe, de 1993 (entre nós: Epistulário Russo, também publicado pela Quetzal, em 1995, igualmente com tradução de Pedro Tamen e Introdução de Robert Bréchon), L´île Méditerranée/Photographies de Mimmo Jodice, que recomendo vivamente e pode ler-se como uma espécie de súmula de Breviário Mediterrânico, e esse não menos belíssimo périplo poético por uma Veneza latente e invisível, um outro autêntico breviário, no tom e no conteúdo, mais do que obrigatório para os amantes da cidade do Adriático, intitulado Druga Venecija (L´Autre Venise), que se pode encontrar também na Fayard. Mediteranski Brevijar é um livro como deviam ser muitos livros: cada palavra e frase pressentem uma infinitude de outras coisas, uma evocação, uma enumeração, uma análise e um itinerário exaustivo. Passa por nós como o vento que nos branqueia a cara à vista do arquipélago das Elafitas, em Dubrovnik, ou com os reflexos do brilho da água quente de Rovinj, na Ístria. Breviário Mediterrânico é uma viagem como deveria ser cada viagem: completa, com o seu «alegre saber», e gradualmente mais leve e parecida com um fantasma de si própria: na memória e na nostalgia. Como um imenso mediterrâneo branco.

Passagem: Outros textos de Predrag Matvejevitch, em La Revue des Ressources, linkada aqui ao lado em Literature & Poetry

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