fevereiro 25, 2008

Escolhidos pela Índia

A Índia provoca nos Ocidentais uma emoção tão intensa que pode fazer "tombar" certos viajantes num delírio que regride espontaneamente ao regressarem ao país de origem. (...) Do século XVI ao início do século XX, muitos autores se interessaram pelos viajantes ocidentais na Índia. Mas encontramos pouco rasto escrito dos milhares de contemporâneos nossos que aí se "perderam" desde as grandes migrações romãnticas dos anos 70 - e ainda aí se perdem. Claro que há as histórias de todos os que "fizeram o caminho", mas poucas investigações sérias se ocupam deste fenómeno, no entanto bem conhecido (...): a Índia, Triângulo das Bermudas da mente. "Ele foi para lá. Desde então é o silêncio na rádio ..." E quando ele volta - se volta -, o viajante é um "repatriado das Índias". Evoca-se então a droga ou as seitas, e está tudo dito ... Porquê tão poucas obras sobre o assunto? Será porque um mito, sobretudo se está vivo, não se escreve, sob pena de perder a sua magia? Ou porque é preciso guardar segredo de um território de refúgio, neste planeta diminuído pelo "pensamento único"? Não é reconfortante sonhar um lugar "ao largo do Real", um lugar intemporal e sem condição, como pode sê-lo para as crianças a ilha de Peter Pan: um jardim suspenso na linha de fuga do nosso imaginário? Esse lugar existe e é a Índia. Os que o sonharam nunca ficam desiludidos quando a descobrem. "Mother India", como lhe chamam os seus habitantes, opõe ao mito da modernidade e ao seu corolário, o culto do trabalho, que o Ocidente parece considerar a única relegião possível, o ideal de uma harmonia do homem com o universo. Assim fazendo, interroga-nos sobre a arrogância de que damos provas ao querer impor os nosso próprios valores, quando existem tantas outras maneiras de apreender o mundo. É talvez esta interrogação, mas também a ausência de limite claro entre o Real e o Imaginário, a vida e a morte, que faz vacilar o viajante ocidental sobre o pedestal das sua certezas. A vertigem que lá se sente, mais do que em qualquer outro lugar, não será a da tomada de consciência súbita de que o que se concebe como Real poderá não ser mais do que ilusão? Não remeterá para o sentimento de pavor que o homem sente perante a fuga do tempo, face à sua inelutável finitude?

(excertos de Fous de L`Inde, Délires d`Occidentaux et sentiment océanique; Régis Airault; Trad. de Ana Isabel Mineiro; Edições Via Óptima; Porto,2006)

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fevereiro 12, 2008

Moleskine (7)

«Cheguei à penúltima ilha como à experiência de um réquiem. Quase de vela acesa, o medo por dentro dos motores do avião que, ao fim de alguns dias, conseguia não ser de novo cancelado (como devem entender este estrangulamento os habitantes da ilha). Lá do alto, ao fazer-se a Santa Cruz, vi de frente o Corvo. Redondo e torto, com as casas voltadas às Flores junto ao mar. Foi súbito e inchado, os olhos mal perceberam esse pouso que lhes pareceu inútil diante do ar. Um morro quase seco, negro e fulvo, com ares de lobo-da-alsácia, um posto recuado de coisa nenhuma, o último momento para mim da destemperada criação das ilhas, o lugar mais exposto da inargúcia portuguesa. Um ponto final
(João Miguel Fernandes Jorge, in Do Corvo a Santa Maria; Edições Relógio D`Água; 1993)

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fevereiro 06, 2008

Inutile Phare de la Nuit (3)

Quantas vezes uma linha nos levará em direcção aos lugares mais improváveis, como «os passos da nossa vida guiados também pela combinação de poucas palavras»?
«Durante muito tempo trouxe na memória uma frase de Chateaubriand: Inutile Phare de la Nuit. Creio que lhe atribuí sempre um poder de desencantado conforto como quando nos apegamos a algo que se revela um inutile phare de la nuit e, contudo, nos permite fazer alguma coisa apenas porque acreditávamos na sua luz: a força das ilusões. Na minha memória esta frase andava associada ao nome de uma ilha longínqua e improvável: Ile de Pico, inutile phare de la nuit.» (Antonio Tabucchi; Donna di Porto Pim e Altre Storie; Trad. de Maria Emília Marques Mano; Difel).

O que também pode levar, no fim da viagem, a um poema de Robert Louis Stevenson:

Deixa que a tua alma encontre uma Âncora neste mundo da matéria. Fundeia aqui o teu corpo - Que desde já este espectáculo imutável seja A gravura nos teus olhos; e quando soar a hora E a verde paisagem escurecer de repente - Os últimos, os que acompanharem o teu cavalo no sonho Acompanharão o teu corpo morto

(An End of Travel. Stevenson, Robert Louis. Poemas. Trad. de José Agostinho Baptista; Lisboa: Assírio & Alvim, 2006)