janeiro 24, 2007

Olhar de Novo

Joseph Brodsky deixa expressamente entender no seu Watermark não ter nutrido grande simpatia por Der Tod in Venedig (Death in Venice; Morte em Veneza), de Thomas Mann, bem como pelo filme de Luchino Visconti, de 1971, com Dirk Bogarde no papel de Gustav von Aschenbach e a música da 5ª Sinfonia de Mahler. Mas Brodsky acaba por ceder quando escreve (Watermark; Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993): «Mesmo assim, a longa sequência inicial, com o Sr. Bogarde numa cadeira de repouso, a bordo de um navio, fez-me esquecer os méritos ou deméritos da obra e lamentar não sofrer de uma doença mortal; ainda hoje sou capaz de reviver esse sentimento». Mas de uma ou outra maneira, partilhemos ou não a opinião de Brodsky, a obra de Mann é um prodígio do século passado (1912) e a sua adaptação por Visconti um dos mais belos filmes da história do cinema. Não vou fazer qualquer abordagem específica a Der Tod in Venedig nem ao filme de Visconti porque não é o lugar, nem tão pouco me considero habilitado. E todos sabemos de antemão qual é a história e do que se trata. E do que se trata é da busca da beleza, do belo, seja qual for e como nos apareça. Mesmo que Mann a entenda numa perspectiva mais platónica, como uma forma, como algo em em si e por si, e que devemos procurar abertos a todas as possibilidades («Pois a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é - nota bem! - a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos (...) e por isso ela é também caminho do artista para o espírito»; citamos Der Tod in Venedig; Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978). Ou Brodsky considere, ainda em Watermark, que «a beleza não pode ser tomada como um alvo, que ela é sempre um subproduto de outras demandas, muitas vezes banalíssimas». Seja como for, em Veneza, no Inverno, «os leões alumiam os nossos crepúsculos» (Watermark) e na Primavera, e com o início da época balnear, «sob um céu pálido e toldado, quando mar jaz, parado e mortiço (...), limitado ao largo por um horizonte insípido que parecia próximo e tão recuado da praia que deixava a descoberto faixas sucessivas de longos bancos de areia», julgamos «cheirar no ar o odor fétido da laguna» (Der Tod in Venedig; Morte em Veneza, continuamos com a tradução de Sara Seruya para a edição da Europa-América). Aqui, no livro de Mann deixámos definitivamente o Inverno para sentir os avanços da estiagem. E o perigo, a vaga impressão na atmosfera e nas ruas e canalli de uma cidade tolhida por um calor espesso e pelo sciroco angustia tremendamente Gustav Von Aschenbach, que nisso pressente uma ameaça, um fim próximo, «uma desfiguração estranha do mundo». O mal, a doença subreptícia, que tínhamos entrevisto em Don`t Look Now, de Roeg (mas no Inverno), adensa-se lentamente e de outra forma à medida que Von Aschenbach prolonga a sua estadia em Veneza e acentua o êxtase pelo jovem aristocrata polaco Tadzio, a personificação do belo. No filme de Visconti, o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler faz pender a balança ainda mais para o lado da incerteza, do torpor e de uma mágoa e fôlego insuportáveis. Von Aschenbach, que no livro de Thomas Mann é um escritor, é na obra de Luchino Visconti um músico - há aqui uma aparente e parcial contradição, pois parece que Mann se inspirou para escrever o seu livro quando viu o compositor Gustav Mahler, caído em lágrimas (seria da perfeição, da distribuição da luz?), na estação de Santa Lucia, a deixar Veneza; fez, contudo, que o protagonista da história fosse músico, mas deu-lhe o nome de Gustav, como primeiro nome; Visconti pegou no nome de Mann mas fez de Aschenbach músico, esse criador da mais incorpórea das artes, e rematou a sua obra com a música imortal do verdadeiro Gustav, o Mahler -, um músico que no seu quinquagésimo aniversário deixa Munique, por uma súbita sensação de «vertigem de fuga e(...) avidez de libertação», e parte para o Sul, para Veneza, onde decide abordar a cidade da única maneira que ela deve ser abordada, a única que faz sentido, a mais perfeita: por barco, em mar alto. É aqui que entroncamos na tal longa sequência inicial, do filme de Visconti, com o Sr. Bogarde, na cadeira de repouso, de que Brodsky fala. A música acentua o carácter melancólico da navegação do vaporetto, com Von Aschenbach, de olhar parado, sofrido, doentio, a ver a aproximação de San Marco. É um momento único em todos os sentidos. Um momento magistral do cinema, que o livro de Mann também prodigiosamente insinua, faz ver, pelo suporte da literatura. Gustav Von Aschenbach, uma vez no cais de San Marco, pedirá a um gondolieri que o leve, mais a bagagem, à ilha do Lido. Mas logo ali, antes de embarcar, «tudo aquilo lhe aparecia como prenúncio de algo de invulgar, der-se-ia que começava a envolvê-lo um alheamento próximo do sonho» (continuamos a citar Morte em Veneza, da Europa-América), como se Veneza já estivesse contaminada por algo imperceptível, que pouco a pouco, durante a temporada estival de Aschebach no Hotel des Bains, no Lido, se iria instaurar e pegar-se, tal uma ferida, com os cheiros da laguna e o sciroco, numa mistura real e impossível de dor e beleza, beleza e morte, agonia e superioridade, caminhos para o espírito, deslocações dos sentidos e visões banais. E nós sabemos, como sabiam Brodsky, Mann, Visconti, Mahler e Von Aschenbach, que tudo isso anda ligado. No Inverno e na Primavera. É preciso é olhar de novo.

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