Rimbaud: Partir (2)
O mistério é esse, o fundamento, a passagem: com Rimbaud, o desregamento da alma e dos sentidos através da fadiga e da deslocação no espaço: ver mais do que pode ver, conhecer o que não pode conhecer. Há definitivamente duas formas de partir para algures: conferir o périplo ao travão de mão de um agente ou de um guia, que tudo decide e planeia, alheando-se de nós e remetendo-nos a uma bolha protegida, uma redoma mediana, burguesa; ou não travar, ir, provar, fazer e refazer o inverso da rotação da terra, parar o tempo, demorar semanas, meses ou anos, desaparecer. J.A. Rimbaud escolheu a segunda.
A Quimera do Ouro «Eis o relato da viagem à Etiópia. É o documento mais importante e mais pormenorizado, pela mão de Rimbaud, sobre a sua jornada africana. (...) Tem, além do mais, um valor psicológico sobre o qual não é necessário insistir. Basta lançar-lhe uma vista e olhos para nos apercebermos de que o poeta está morto, que apenas subsiste o explorador, o comerciante. O aventureiro do real sucedeu ao aventureiro do ideal. Aliás, é no fundo o mesmo homem, o mesmo carácter insociável e inconstante, com a sua perpétua instabilidade, a sua necessidade de mudança e renovação, o seu devorador, apaixonado desejo de posse: apenas mudou o objecto da conquista. A solução de continuidade, nesta vida trepidante, é mais aparente do que real. Ele próprio tinha previsto a prodigiosa metamorfose, o seu destino de pioneiro e pesquisador de ouro. Como não recordar as palavras proféticas da Saison en enfer? «Dou por finda a jornada, deixo a Europa. O ar marinho abrasará os meus pulmões, longínquos climas me curtirão. (...) Regressarei com membros de ferro, a pele tisnada, o olhar furioso; pela máscara, julgar-me-ão de uma raça forte. Terei ouro. (...) Embrenhar-me-ei nos negócios políticos. Salvo. Salvo, não. Vencido. Mas herói, sem dúvida alguma, lançado de cabeça baixa nos desertos de África como ainda há pouco na solidão das ideias, ávido do desconhecido, apaixonado pelo ignoto, talvez o tipo mais audacioso de explorador.» (texto de Jean-Marie Carré in Cartas da Abissínia de Arthur Rimbaud seguido de Mar Vermelho de Philippe Soulpault; Trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares; Edições & etc; Lisboa 2000) Depois, a 5 de Maio de 1884, Jean Arthur Rimbaud escreveria, de Aden, no actual Yemen, na península arábica: «(...) Não posso dar-vos um endereço para a resposta a esta carta, pois pesoalmente ignoro para onde irei proximamente arrastado, por que caminhos, por onde, e porquê e como!» E também de Aden, a 15 de Janeiro de 1885, pouco menos de um ano depois: «(...) Em todo o caso não esperem que o meu temperamento se torne menos vagabundo; pelo contrário, tivesse eu meios para viajar e não fosse obrigado a ficar para trabalhar e ganhar a vida, não me veriam dois meses no mesmo sítio. O mundo é tão grande e tão cheio de regiões magníficas que para visitá-las todas nem a vida de mil homens bastaria. Mas, por outro lado, não gostaria de nadar a vagabundear na miséria, gostaria de ter alguns milhares de francos de rendimentos e poder passar o ano em dois ou três lugares diferentes, vivendo modestamente, fazendo alguns negociositos para poder pagar as minhas despesas. Viver todo o tempo no mesmo sítio, hei-se sempre achar isso muito triste. Enfim, o mais provável é que uma pessoa vá para onde não quer, que faça o que não queria, e viva e morra de um modo totalmente diferente do que sempre desejou, sem esperar qualquer espécie de compensação (...).»
1 Comments:
Uma breve nota a acompanhar o agrado pela leitura deste post: O Rui diz: "Basta lançar-lhe uma vista de olhos para nos apercebermos de que o poeta está morto.". Discordo. Creio que, para Rimbaud, o "sujeito poético" tanto pode revelar-se pela escrita como pela acção. E daí a antecipação da citada "saison en enfer".
Cumprimentos,
ams
Enviar um comentário
<< Home