dezembro 15, 2008

Irlanda: A Música (2)

"By God, the old man could hangle a spade./ Just like his old man", escreve Seamus Heaney em Digging. O velho cantor do Connemara haveria de gostar deste poema. A maior parte da paisagem do Connemara são pequenos campos trabalhados ao longo de gerações, homens "stooping in rhythm through potato drills", a cantarem enquanto erguem os muros pedra a pedra e a interiorizarem as palavras legadas pelos seus antepassados. A música tradicional irlandesa comporta uma espécie de mnemónica; lembra-nos os tempos antigos, e a passagem do tempo, e traz-nos à memória os rostos de amigos ausentes. Por outro lado, também conduz o passado ao futuro; e é, igualmente, uma música essencial e precisa para conduzir. O poema de Seamus Heaney intitulado Postcript desenvolve um tema recorrente da sua poesia, o acto de conduzir: conduzir como forma de ir de um lugar ao outro, conduzir até ao interior de cada um, conduzir como meditação. Em Postcript estamos no County Clare, aliás a região de origem da maior parte da música de um dos grandes artistas irlandeses, Liam O ´Flynn (uilleann pipes e whistle). O carro é uma espécie de sala de estar, sujeita à cadência da paisagem e às variações do tempo e da atmosfera. Também a música tem esse tipo de vulnerabilidade, à medida que a escutamos a chegar de um outro lugar, porventura vinda do oceano, dos cliffs do Co. Clare, como sucede em Pookas´Tune, Port na bPúcaí, ou então como os antepassados acreditavam que assim fosse.

And some time make the time to drive out west/ Into County Clare, along the Flaggy Shore,/ In September or October, when the wind/ And the light are working off each other/ So that the ocean on one side is wild/With foam and glitter, and inland among stones/The surface of a slate-grey lake is lit/ By the earthed lightening of flock of swans,/ Their feathers roughed and ruffling, white on white,/ Their fully-grown headstrong-looking heads/Tucked or cresting or busy underwater./ Useless to think you'll park or capture it/ More thoroughly. You are neither here nor there,/ A hurry through which known and strange things pass/ As big soft buffetings come at the car sideways/ And catch the heart off guard and blow it open.

Postsript, Seamus Heaney De Lisdoonvarna a Ballyvaughan, passando por Kilfenora, bem no centro do The Burren e do Co. Clare, e tomando a inesquecível Road Coast 477, para trás, para sul, com as Aran Islands dispostas à direita, chegamos a Doolin, um dos grandes centros de preservação e divulgação da autêntica Irish Music. Aí, protegidos da chuva recorrente, com a música que todas as noites se toca e canta nos pubs, designadamente no Macdermotts e no Gus O`Connors, somos afinal conduzidos a um território outro que nos aparece, vista do Aran View House Hotel, como um ponto de luz no oceano escuro, a brilhar numa das extremidades de Inish Oirr, a mais pequena das Aran e a mais próxima do tempestuoso cais de Doolin. Na Irlanda música e poesia são uma e a mesma coisa; música, terra, mar e paisagem também. Não há uma sem a outra.