Peter Pan e o Rei Leão
Mais do que qualquer outro país, a Índia estimula o Imaginário pelo artifício de emoções estéticas intensas que podem, no entanto, de um momento para o outro, empurrar o viajante para a angústia mais completa. Assim, a nossa "prova" da Índia está tingida de ambivalências. Claro que há a história pessoal de cada um, o seu "apelo-à-viagem" e o regresso de traumatismos mal digeridos que "sedimentaram" em nós e que o inconsciente traz, em certas ocasiões da vida, para cima do palco. Porque a Índia fala ao inconsciente: ela provoca-o, fá-lo ferver e, por vezes, transbordar. Faz reaparecer camadas profundas da nossa psique, o enterrado. Ela desdobra e sobrepõe no aqui e agora os diferentes estratos da nossa história. Simples estremecimento do espírito, esta sensação pode provocar em certas pessoas uma verdadeira explosão psicótica.
O próprio Freud não foi insensível à dimensão íntima de certos lugares. Ele descreve assim o sentimento de estranheza que sentiu ao contemplar pela primeira vez a Acrópole, onde o seu pai nunca tinha podido ir: "Veio-me subitamente esta estranha ideia: quer dizer, tudo existe realmente como tínhamos aprendido na escola".
Existe, por outro lado, na viagem, como na hipnose, uma parte de sugestão, e alguns deixam-se, mais facilmente que outros, levar sem resistência pela corrente. Freud terá tido medo de tentar a experiência, e de provar esta sensação oceânica "de pertença ao universal", que reconhece ignorar nas suas cartas a Romain Rolland?
(...) As dimensões inconscientes do desejo de evasão, segundo Freud, são marcadas pelo cunho duplo da procura e da ruptura. Mas ao tentar arrancar-se do seu passado, ao seu factum, o viajante corre sempre o risco de lá voltar a mergulhar brutalmente. Para outros, como Paul-Laurent Assoun, o viajante parte para a realidade à procura do progenitor imaginário. "Não se sentindo já limitado no seu desejo, o sujeito é absorvido por este movimento de procura fantasmática. Deste modo, o viajante refere-se frequentemente a um sentimento de exaltação. (...) Já não se encontra senão remetido senão à sua própria imagem num jogo de espelhos, que não é interrompida pelo olhar do outro, olhar ao qual o sujeito desejava precisamente subtrair-se, partindo em viagem."
(...) Aqui estamos de novo na ilha das crianças perdidas de Peter Pan - ou na errância despreocupada do Rei Leão, com a sua famosa divisa: Akumba matata ("faz o que te apetece") -, um lugar onde nos podemos transformar, ganhando tempo antes de regressarmos para junto dos nossos. (excertos de Fous de L`Inde, Délires d`Occidentaux et sentiment océanique; Régis Airault; Trad. de Ana Isabel Mineiro; Edições Via Óptima; Porto,2006)
Etiquetas: India, Livros: Fous de L`Inde
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