março 08, 2008

Peter Pan e o Rei Leão

"Pensa-se que se vai fazer uma viagem, dizia Nicolas Bouvier, mas depressa é a viagem que vos faz ou vos desfaz". A viagem à India começa cedo, com a ideia que fazemos dela veiculada pela nossa cultura, os seus clichés, as suas lendas, os seus mitos, mas também a nossa infância alimentada de contos e de histórias maravilhosas. Este fantasma consolida-se na adolescências com os nossos encontros, com aqueles que "de lá regressaram". Depois há subitamente o choque, depois a prova e, seguidamente, a confirmação da Índia: as sensações novas submergem-nos, provocando um sismo íntimo que pode estar na origem da síndroma indiana. Finalmente, depois do regresso, toma-nos a nostalgia da Índia.

Mais do que qualquer outro país, a Índia estimula o Imaginário pelo artifício de emoções estéticas intensas que podem, no entanto, de um momento para o outro, empurrar o viajante para a angústia mais completa. Assim, a nossa "prova" da Índia está tingida de ambivalências. Claro que há a história pessoal de cada um, o seu "apelo-à-viagem" e o regresso de traumatismos mal digeridos que "sedimentaram" em nós e que o inconsciente traz, em certas ocasiões da vida, para cima do palco. Porque a Índia fala ao inconsciente: ela provoca-o, fá-lo ferver e, por vezes, transbordar. Faz reaparecer camadas profundas da nossa psique, o enterrado. Ela desdobra e sobrepõe no aqui e agora os diferentes estratos da nossa história. Simples estremecimento do espírito, esta sensação pode provocar em certas pessoas uma verdadeira explosão psicótica.

O próprio Freud não foi insensível à dimensão íntima de certos lugares. Ele descreve assim o sentimento de estranheza que sentiu ao contemplar pela primeira vez a Acrópole, onde o seu pai nunca tinha podido ir: "Veio-me subitamente esta estranha ideia: quer dizer, tudo existe realmente como tínhamos aprendido na escola".

Existe, por outro lado, na viagem, como na hipnose, uma parte de sugestão, e alguns deixam-se, mais facilmente que outros, levar sem resistência pela corrente. Freud terá tido medo de tentar a experiência, e de provar esta sensação oceânica "de pertença ao universal", que reconhece ignorar nas suas cartas a Romain Rolland?

(...) As dimensões inconscientes do desejo de evasão, segundo Freud, são marcadas pelo cunho duplo da procura e da ruptura. Mas ao tentar arrancar-se do seu passado, ao seu factum, o viajante corre sempre o risco de lá voltar a mergulhar brutalmente. Para outros, como Paul-Laurent Assoun, o viajante parte para a realidade à procura do progenitor imaginário. "Não se sentindo já limitado no seu desejo, o sujeito é absorvido por este movimento de procura fantasmática. Deste modo, o viajante refere-se frequentemente a um sentimento de exaltação. (...) Já não se encontra senão remetido senão à sua própria imagem num jogo de espelhos, que não é interrompida pelo olhar do outro, olhar ao qual o sujeito desejava precisamente subtrair-se, partindo em viagem."

(...) Aqui estamos de novo na ilha das crianças perdidas de Peter Pan - ou na errância despreocupada do Rei Leão, com a sua famosa divisa: Akumba matata ("faz o que te apetece") -, um lugar onde nos podemos transformar, ganhando tempo antes de regressarmos para junto dos nossos. (excertos de Fous de L`Inde, Délires d`Occidentaux et sentiment océanique; Régis Airault; Trad. de Ana Isabel Mineiro; Edições Via Óptima; Porto,2006)

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