A Maior de Todas as Viagens
No princípio dos anos 80, o mundo, a sociedade e as nossas vidas eram muito diferentes do que são hoje. Tão diferentes como a idade que temos agora. Quando eu tinha 14, 15 e 17 anos despertei para um mundo fascinante, distante e único, tão próximo daquilo que nos funda e eterniza, enquanto outros, da minha geração, se envolviam com outras coisas mais terrenas e acessíveis. Nesse tempo, já lá vão mais de 20 anos, apareceu na tv portuguesa uma série de divulgação científica, cuja produção era considerada a mais avançada da época. Essa série chamava-se Cosmos. Eram 13 episódios, apresentados, já não me lembro a que dias da semana, na rtp1. A série teve origem no livro do mesmo nome, cujo autor, um cidadão norte-americano, aí dos seus 50 anos, era-o também de outras obras. Nesse tempo, quando eu comecei a ver devotamente o Cosmos e a ler os os livros e artigos desse Senhor, eu fui conduzido a um outro mundo e a uma outra dimensão, mágica, que me formou enquanto pessoa, intelectual e moralmente, e influenciou toda a minha vida futura. E como a mim - viria a sabê-lo mais tarde - o mesmo sucedeu a dezenas de jovens portugueses da altura e a milhares de outros jovens e adultos espalhados pelo planeta; hoje, a milhões. Esse cidadão norte-americano, esse Senhor que nos entrava pela casa adentro, com o seu blazer de bombazine beije e camisola de gola alta côr de vinho, e uma voz firme e apaixonada, quase em transe, a falar-nos de tudo o que existe, existiu ou existirá, que me prendia horas a fio na leitura dos seus livros belíssimos, e que me fez, inclusive, endereçar-lhe cartas para Pasadena, na Califórnia, ser um dos primeiros membros portugueses da Planetary Society e sonhar em poder um dia trabalhar no Rádio-Telescópio de Arecibo, no Novo México, de auscultadores na cabeça a tentar captar, noite dentro, no silêncio do deserto, possíveis padrões de sinais de rádio vindos algures da galáxia, esse homem que transformou a inteligência, a compreensão, o carácter e a sensibilidade de tantos e tantos de nós naquele tempo chamava-se Carl Sagan.
Vivíamos, então, uma época maravilhosa, em que o entendimento das questões essenciais que afligem o ser humano desde as suas origens, como a vida e a morte, a origem das espécies e da vida na Terra, e a exploração do Universo, começava a poder ser vislumbrada através do tênue feixe de luz que a frágil lanterna da ciência consegue lançar sobre a nossa descomunal ignorância. Poucos conseguiam ter consciência dessas maravilhas e desse privilégio, contemplar esse momento único, regozijar-se de pertencer a tal momento da nossa fugaz existência no pano de fundo do oceano cósmico. Um desses raros homens foi Carl Sagan. Ninguém se esforçou mais do que ele para mostrar a todos nós, cientistas e leigos, a importância fundamental de tornar acessível a toda a espécie humana a posse dessa ténue luz da ciência. Ninguém como Sagan teve a coragem e a iniciativa de colocar à prova o pensamento científico, sem preconceitos, sem soberba e sem arrogância. Sagan ensinou-nos a intricada simplicidade das coisas e a relatividade de tudo. Ensinou-nos a modéstia, atributo próprio, como dizia, de quem se dedica ao estudo da astronomia, pois mais tarde ou cedo chegará a perceber o quanto finitos e incompletos nós somos. Com ele aprendemos a saber que a inteligência, a dignidade e a superioridade de cada um de nós está naquilo que aparentemente não se vê, mas no que se sente e busca para lá de todas as fronteiras, acima dos espíritos comezinhos e limitados. Podemos lembrar Sagan por ter sido um cientista e um astrônomo de renome internacional, pela sua participação em alguns dos mais importantes projetos da NASA como o das primeiras sondas Viking para Marte e Voyager para Júpiter (nos anos 70) e pela sua constante aparição nos meios de comunicação social e nas conferências da mais elevada comunidade científica do planeta. Mas certamente, para os que conhecem, ainda que superficialmente, a sua obra, as suas idéias e os seus ideais, Carl Sagan será sempre lembrado como um ser humano muito especial, com uma visão de mundo extremamente científica e, ao mesmo tempo, muito particular, demasiado vasta para o comum dos mortais, profundamente essencial e sentimentalmente poética. A ciência era sua musa inspiradora e falar da ciência era sua poesia. Sagan inspirou-nos a todos nós, num ou noutro sentido, na busca das questões fundamentais e verdadeiramente importantes. Soubémos com ele a não nos limitarmos a este mundo, mas a olhar as coisas na sua perspectiva mais profunda e verdadeira, com a consciência da nossa insignificância, com a elevação do nosso carácter.
Carl Sagan era acima de tudo um idealista, um visionário e um sonhador. Talvez o último grande humanista, o derradeiro da linhagem do espírito grego. Perseguiu sempre as suas paixões ao longo da vida, como aquela que nutria pelo planeta Marte, e os seus sonhos, como aquele que foi o maior de todos, aquele que nos continua a afligir e a apaixonar, e que Sagan dizia ser o mais significativo, a busca essencial e a tarefa mais bela e relevante da história humana: a procura de vida e inteligência além da Terra, que retratou no romance que escreveu chamado Contacto, adaptado ao cinema por Robert Zemeckis, onde Jodie Foster, o alter-ego de Sagan, escuta os sinais vindos do espaço (SETI). Embora não tenha vivido para poder ver realizado esse que foi o maior de todos os seus sonhos (e quando se realizará???), Carl ainda pôde ver alguns deles concretizados. Outros deixou-os como legado às gerações futuras, em quem depositava toda a confiança e esperança. Quando me lembro da série televisiva Cosmos e dos seus livros e escritos não posso deixar de regozijar-me e agradecer, não sei bem a quê ou a quem, o privilégio de ter existido nesta época e compartilhar da existência de um ser humano como Carl Sagan. Com ele vamos através da poeira interestelar pelas vozes da fuga cósmica, detemo-nos, como Mark Twain, deitados na relva, nas noites de verão, a perscutar a estrelas, sentimos um arrepio ao escutar a música que John Williams compôs para ET ou os acordes de Vangelis para as primeiras e eternas imagens de Cosmos; com Sagan somos levados a ter uma fé inabalável no percurso da humanidade e a empreender a busca dos princípios fundamentais. Sagan ensinou-nos a relativizar o mundo e as coisas, a ir mais além do que devemos ir e a acreditar no que se manifesta por detrás do que aparece oculto. Carl Sagan conduz-nos numa viagem primordial pela história humana e pela evolução do Universo e aponta-nos, como uma luz última, tal o dedo reluzente do pequeno ET a tocar-nos a testa, os mundos para além da Terra e as vidas que atravessam a poeira do tempo e do espaço. Com Sagan regressamos a um mundo antigo e essencial, e à infância quente e protegida em que nos debruçávamos no parapeito para ouvir a música das estrelas e sentir os mundos que gravitam dentro e fora de nós, como uma grande enciclopédia galáctica. Conhecer Carl Sagan é compreender que o nosso mundo nunca mais será o mesmo. É empreender o maior de todos os mistérios e iniciar a maior de todas as viagens. Carl Sagan morreu em 20 de Dezembro de 1996: vai fazer dentro de 1 mês 11 anos.
“A espécie humana precisará crescer muito, deixar sua infância para trás. Talvez os nossos descendentes nesses tempos remotos olhem para trás, para a longa e errante jornada empreendida pela raça humana a partir das suas obscuras origens no distante planeta Terra, e, embrando as nossas histórias pessoais e colectivas, o nosso romance com a Ciência e a Religião, tenham uma visão plena de clareza, compreensão e amor." Carl Sagan (09/11/1934 – 20/12/1996)
Passagem: Carl Sagan Portal; Contact; Planetary Society; SETI - Search for Extraterrestrial Inteligence
Etiquetas: Carl Sagan
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