março 27, 2008

O Sentimento Oceânico

A Índia sempre foi o símbolo da grande viagem e do maravilhoso, de Alexandre o Grande a Marco Pólo, mas também da idade de ouro, ao abrigo das fomes e das epidemias, na altura da Idade Média europeia. A esta imagem mítica opõe-se uma imagem mais recente, a da miséria e das fomes. (...) Cada época encontra ali os seus fantasmas: primeiro é a Índia dos reis magos, das pedras preciosas e das especiarias, depois o país das origens da civilização e dos grandes sistemas de pensamento. Pelos começos do século XX é a Índia dos faquires, dos marajás e dos animais sagrados, e depois dos anos 60 a dos gurus, da viagem e da droga. Apresenta-se sempre como uma espécie de negativo da Europa. É, de algum modo, a viagem através do espelho de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol, ou a descida aos infernos de Orpheu, de Jean Cocteau, como o país de "nenhures" de Peter Pan.

Pode ser a Índia do turismo, mas é desde sempre o país das peregrinações. (...) Os ocidentais são apenas mais alguns peregrinos. É a viagem ao Oriente dos românticos do século XIX e dos anos 60, em direcção às nossas origens culturais e individuais. Porque "este velho país novo dá a sensação de sair das águas da criação. Ele não representa nem o passado nem o futuro da humanidade, mas o seu banho original".

A que se deve como se uma parentela visceral nos ligasse, nos unisse esta espécie de feitiço que a Índia exerce sobre nós? "Bela ou aterradora, ela influencia-nos por todos os seus aspectos como se uma parentela visceral nos ligasse, nos unisse desde sempre". E o Ocidental depressa lhe chama, ele também, "Mother India", aquela que "pode dar-vos tudo, mas também retirar-vos tudo". É o país onde podemos renascer para nós próprios e para os outros, porque aqui tudo parece possível. Sentimos lá este "sentimento oceânico" de "união íntima com o Grande Todo, de pertença ao universal" de que fala Freud em Civilização e os seus descontentamentos, porque os limites do eu se tornam incertos. Esta dimensão regressiva faz com que nos sintamos todos crianças nesta civilização maternal. No entanto, a relação com este país é totalmente ambivalente. O sentimento de amor dá lugar de um dia para o outro a um sentimento de ódio, o "tudo é possível" transforma-se em "o todo impossível" e o "renascer" procura autodestruição. Assim, esta viagem ao Oriente que se ergue ao mesmo tempo como iniciação e prestação de provas do eu não é desprovida de alguns perigos psíquicos. Opera no espaço-tempo, leva o indivíduo ao ponto mais profundo do seu ser e metamorfoseia-o. "Qualquer viagem é assim, seguindo único itinerário, viagem em direcção ao ´centro` do objecto da procura e viagem ao centro de si mesmo. Os sucesso e os falhanços que acontecem no caminho têm igual importância e são igualmente necessários a esta elaboração do homem que deve, obedecendo à injunção plotiniana, esculpir a sua própria estátua". (excertos de Fous de L`Inde, Délires d`Occidentaux et sentiment océanique; Régis Airault; Trad. de Ana Isabel Mineiro; Edições Via Óptima; Porto,2006)

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