agosto 18, 2010

As Ilhas (6)

A Ilha Exílio
«Exílio» significa etimologicamente expulsão da pátria e dor. A Odisseia constitui a sua primeira expressão literária: depois dos dez anos do cerco de Tróia, Ulisses é condenado pelos deuses a nove anos de exílio suplementar. Bem mais tarde, o século XIX verá os exílios insulares à luz do romantismo, o primeiro deles, o de Napoleão, é narrado no Mémorial de Sainte-Hélène, de Las Cases. A obra, objecto de culto da geração romântica, é o livro de cabeceira de Julien Sorel em O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Outra personalidade do século, autor da sua própria lenda que se agiganta no exílio, Victor Hugo deixa a França após o golpe de Estado de Luís-Napoleão Bonaparte. Depois de alguns meses em Bruxelas, entre Dezembro de 1851 e Agosto de 1852, fixa residência em Jersey, instalando-se na vivenda Marine Terrace. Da janela do seu quarto abarca a costa francesa e trabalha obstinadamente. Expulso de Jersey pelo governo inglês, passa a viver em Guernesey, onde permanece até à queda do Segundo Império, recusando a amnistia oferecida por Napoleão III, em 1859. Transformado na consciência da oposição, ao publicar La Voix de Guernesey, em 1867, Hugo, o exilado, dá à sua obra inflexões oceânicas e cósmicas, indubitavelmente ligadas à insularidade forçada. Ressoam em Les Châtiments ou nos últimos textos de La Légende des siècles, «Pleine Mer» e «Plein Ciel». No século XX, é a ilha de Manhattan que acolhe inúmeros exilados oriundos da Europa e da Ásia. A porta de entrada no Novo Mundo é precedida de uma outra ilha, Ellis Island, cujos contornos foram evocados por Robert Bober e Georges Perec nos seus belos Récits d`Ellis Island, marcados pela sensibilidade e o pudor». (texto de Clémence Boulouque; Lire; Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)

junho 29, 2010

As Ilhas (5)

A Ilha do Excesso
«A ilha é, também, o território do excesso, aquilo a que os gregos chamavam hubris. É numa ilha, com efeito, que Platão situa a Atlântida nos diálogos Timeu e Crítias. Segundo o filósofo ateniense, foi Sólon quem trouxe do Egipto, por volta do ano 600 a.C., a história e a descrição dessa ilha condenada pelos seus excessos. Imensa e opulenta, dividida em dez reinos e em milhares de distritos, com uma capital toda em ouro e marfim, a Atlântida opõe-se ponto por ponto à cidade ideal, modesta e unida, à Atenas arcaica proposta em A República. Será, aliás, a propensão ao desconexo e à multiplicidade que levará a Atlântida à ruína. A ilha é, neste caso, a figura negativa do outro. Outro exemplo da desmesura fatal que podem representar as ilhas encontra-se no Canto IX da Odisseia: depois de ter escapado aos Lotófagos, Ulisses chega à ilha do ciclope Polifemo (a actual Sicília); este devora imediatamente seis dos dez companheiros do viajante. A desmesura é aqui acompanhada de transgressões de todo o tipo, como o consumo de carne humana e de ambrósia em excesso. É precisamente por isso que o ciclope provoca a sua própria perda: Ulisses consegue embriagá-lo, cravar uma estaca no seu olho e fugir da caverna, enganando, mais uma vez, os ditames do destino. Essas costas insulares do excesso são, também, pintadas na banda desenhada, com o pincel de Hergé nas aventuras de Tintin, designadamente nas pranchas da famosa A Estrela Misteriosa, em que a fauna e a flora são gigantescas, ameaçadoras e, simultaneamente, ameaçadas. Porque as ilhas da desmesura são efémeras: «Na literatura utópica, a ilha que desaparece submersa é, também, uma maneira de mostrar que as utupias não podem existir», comenta Alberto Manguel.» (texto de Clémence Boulouque; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)

abril 27, 2010

As Ilhas (4)

abril 22, 2010

As Ilhas (3)

A Ilha Virgem
«Rousseau, em O Contrato Social, adverte o leitor de que só um «povo de deuses» seria capaz da democracia, e que um «governo tão perfeito» não «convém aos homens». Mas o seu pessimismo antropológico detém-se de forma bizarra nas fronteiras da ... Córsega, acerca da qual afirma ser o único país da Europa ainda «capaz em matéria de legislação». Se a Córsega escapa à melancolia do genebrino é pelo facto de ela ser um milagre onde estão reunidas as condições impossíveis de encontrar noutros lugares para um governo democrático: em primeiro lugar, trata-se de uma ilha; depois, é um pequeno Estado em que todos os membros são iguais, de costumes simples e indiferentes ao luxo ... Portanto, «o povo corso encontra-se no estado feliz que torna possível uma boa instituição ... São necessárias boas leis (...) para restabelecer a concórdia totalmente destituída pela tirania», declara o filósofo no Project de Constitution pour la Corse, redigido em 1763. Não é inocente que o eremita orgulhoso faça de uma ilha a sua utopia concreta; só um espaço liberto dos usos e costumes pode encarnar a ficção rousseauniana de um estado da natureza preservado da desgraça e da queda na História. Somente uma ilha, ainda virgem, permite abjurar as «leis artificiais inventadas pelos homens» em proveito das leis naturais que «comandam o coração e não tiranizam de forma alguma as vontades». Quando os continentes derivam e as fraquezas prosperam, a ilha é exaltada como um enclave, um paliativo, a força elementar de uma saúde perdida desde que o homem vive - e sobrevive - em sociedade. A ilha é a origem do mundo, a promessa de um novo começo e porto de abrigo das nossas esperanças perdidas. Salvaguardada da história pelo mar, a ilha encarna a idade de ouro do humano e, portanto, também a promessa da sua redenção»
(texto de Raphael Enthoven; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)

março 10, 2010

As Ilhas (2)

A Ilha Iniciática
«A ilha é um lugar ideal para proceder à iniciação dos heróis. É o caso, designadamente de Creta: Zeus, o deus dos deuses, aí nasceu, longe dos palácios divinos, e aí foi educado e iniciado pelos Curetes nas faldas do monte Dicte, lembra Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias. Esta ilha abrigará mais tarde o famoso labirinto concebido por Dédalo, onde serrá apriosionado o Minotauro (criatura demoníaca meio-homem, meio-touro) e de onde o jovem Ícaro, ignorando as advertências paternas, se evadirá perecendo nas águas. Neste labirinto, ainda, Teseu terá de aprender a escapar às armadilhas antes de retornar como rei a Atenas ... Creta permanecerá, aliás, para os atenienses (que a venceram cerca do ano 1400 a.C.) a imagem do outro, derrotado e escarnecido, exercendo, no entanto, uma atracção inquietante. Se a ilha surge com tanta frequência como lugar dos ritos de passagem, é também, por simbolizar, por excelência, o local de difícil acesso. As iniciações que aí se realizam são, consequentemente, múltiplas. Intelectuais, antes do mais, como em A Ilha do Dia Antes, de Umberto Eco. Em 1643, Roberto de la Grive naufraga perto das ilhas Fiji. Único sobrevivente, sem saber nadar, não consegue chegar à ilha que avista do seu navio ... Essa costa no objecto de todos os seus fantasmas e Roberto, através dos seus monólogos, perdido num no man`s land mental e geográfico, reconstitui as mais diversas invenções do saber, permitindo a Eco criar uma enciclopédia da sua lavra. Em O Deus das Moscas, William Golding recompõe o mundo a partir de uma iniciação sangrenta: abandonados numa ilha após a Segunda Guerra Mundial, as crianças redesenham uma sociedade de adultos com as suas hierarquias, desvios e vítimas sacrificiais. Mas a insularidade é, igualmente, um lugar recôndito para outras educações, sentimentais desta feita: em A Ilha de Arturo, Elsa Morante descreve Procida, no golfo de Nápoles, e situa aí o território dos amores interditos e adolescentes, enquanto Mario Soldati, nas suas Lettere de Capri, evoca os amores adúlteros onde as lembranças e as imagens do ser amado se insinuam e esvanecem nos reflexos da Gruta Azul, aprendendo, também, a viver com a ausência.»
(texto de Clémence Boulouque; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas).

fevereiro 17, 2010

As Ilhas (1)

A Ilha Mãe
«E com os olhos cheios de lágrimas fitava o mar nunca vindimado. No Canto V da Odisseia, onde começa realmente o périplo de Ulisses - os quatro primeiros capítulos traçam o itenerário do seu filho Telémaco -, o herói não pára de interrogar o horizonte. Retido pela ninfa Calipso, generosa e apaixonada, sonha, ainda assim, com a sua Ítaca, a sua pátria, a sua ilha. Essa obsessão do regresso transformará para sempre Ítaca no símboço da mãe pátria. Ítaca, ilha matriz. O nome de Ulisses, invocado como a imagem do regresso feliz, está presente em Joaquim du Bellay, mas, igualmente, no quarto livro das Memórias d´além da Campa, de Chateaubriand. Entretanto, com o tempo, as trompetas de Il Ritorno di Ulisse in Patria (que ressoam na ópera de Monteverdi, em 1641) passaram a vibrar num tom bem diferente: na leitura feita por uma certa modernidade, o retorno torna-se sangrento. Assim, no seu Ulisses, peça de 1928, Nikos Kazantzakis descreve uma personagem ciclotímica totalmente apostada em massacrar os pretendentes - mesmo argumento em Gehart Hauptamann, dramaturgo alemão do período entre guerras. As leituras mais contemporâneas - e freudianas - da Odisseia contestam até a visão de uma fidelidade a uma terra e a uma família insusbtituíveis ... Jean Giono, em Aux origines de l´Odyssée (1938), sugere que essa longa errância foi forjada por Ulisses para justificar, a posteriori, a sua ausência a Penélope ... A Ilha-mãe está, ainda, no cerne de O Desprezo de Alberto Moravia: um jovem argumentista que trabalha numa adaptação da obra de Homero é testemunha do diferendo entre o produtor e o encenador, cujas leituras do texto são radicalmente opostas. Para um trata-se dum périplo iniciático, da travessia de desafio em desafio no fito de reeencontrar uma ilha matricial, enquanto o encenador defende que a Odisseia não passa da metáfora de um desamor. E é, precisamente, essa interpretação que subjaz, também, ao Ulisses de Joyce, com as deambulações de Leopold Bloom a menterem-no afastado da sua esposa, Molly.»
(texto de Clémence Boulouque; Lire, Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)

janeiro 08, 2010

Moleskine (13)

«Se para os homens a morte é necessidade, porque razão alguém
se agarraria em vão, sentado nas trevas, a uma velhice anónima,
privado de tudo o que é belo?»
(Ode Olímpica I, Píndaro - Trad. de Frederico Lourenço)

dezembro 04, 2009

Rimbaud: Partir (5)

Jean Arthur Rimbaud, a sofrer de um tumor no joelho, faz-se transportar de maca, coberta por uma cortina, pela costa, de Harar a Zeilah, em quinze dias. Em Zeilah, derreado, paralisado, embarca no vapor, durante três dias, para Aden, onde passa uma quinzena. Devido à gravidade do seu estado, os médicos sugerem repatriá-lo para França, para ser hospitalizado. Em 20 de Maio de 1891 dá entrada no Hôpital de la Conception, em Marselha. A 25 de Maio é-lhe amputada a perna direita. Internado, doente, dependente das muletas, enviado a uma existência sedentária, consciente da sua debilidade e dos perigos próximos, 10 anos depois de ter partido de França para a sua imensa e barroca jornada africana, escreve:
Marselha, 10 de Julho de 1891: (...) Que maçada, que fadiga, que tristeza ao pensar em todas as minhas antigas viagens, e em como me encontrava há cinco meses apenas! Onde estão as caminhadas através dos montes, as cavalgadas, os passeios, os desertos, os rios e os mares? (...) E eu que justamente tinha decidido regressar este verão para me casar! Adeus casamento, adeus família, adeus futuro! A minha vida foi-se, não sou mais do que um cepo imóvel. (...)
A 23 de Julho do mesmo ano Rimbaud deixa o Hospital e apanha, sózinho, o combóio para Roche, aonde não regressava há 10 anos. Contudo, em 23 de Agosto o seu estado agrava-se novamente e é obrigado a voltar para Marselha, acompanhado da sua irmã Isabelle. E leva uma ideia fixa: embarcar outra vez para África. Chega a fazer planos para esse fim. Mas a doença, que se generaliza rapidamente, irá impedi-lo. A 10 de Novembro de 1891, às dez horas da manhã, Jean Arthur Rimbaud morre em Marselha, no Hôpital de la Conception, depois de várias semanas em semi-coma. A sua irmã Isabelle acompanhou-o nesta longa agonia. A notícia da sua morte será conhecida em Paris não antes de 1 de Dezembro.
Mas a 9 de Novembro de 1891, exactamente na véspera da sua morte, Rimbaud ainda tinha escrito uma carta, a sua última, dirigida ao Director dos Transportes Marítimos de Marselha. A sua ideia era regressar a África, pelo Suez. As últimas palavras dessa carta ficaram na nossa memória como uma apologia da partida ... para algures ...
(...) Dizei-me a que horas devo ser transportado para bordo ...

novembro 02, 2009

Rimbaud: Partir (4)

Fragmentos, cartas, passagens: Rimbaud prossegue, desaparece progressivamente, entre fadigas e privações. Volta ao Cairo, pensa regressar à Abissínia, partir até Zanzibar, ou até à China, quem sabe onde? Fica por Harar; mas adivinhava-se ...
Cairo: 23 de Agosto de 1887: (...) Vim para aqui porque este ano os calores eram insuportáveis no Mar Vermelho: todo o tempo de 50 a 60 graus; e, encontrando-me muito enfraquecido, após sete anos de fadigas que nem se pode imaginar e privações as mais abomináveis, pensei que dois ou três meses aqui me restabeleceriam; mas são mais despesas, dado que não encontro nada para fazer, e a vida é à europeia e muito cara. Ultimamente, tenho sido atormentado por uma dor reumática nos rins, que me faz perder a paciência; tenho uma outra na coxa esquerda que de vez em quando me paralisa, uma dor articular no joelho esquerdo, uma dor (já antiga) no ombro direito; tenho os cabelos todos grisalhos. Sinto a minha vida preclitante. Façam ideia de como uma pessoa deve ficar depois de proezas do género das seguintes: travessias de mar e viagens por terra a cavalo, de barco, sem roupas, sem comida, sem água, etc., etc. (...) Não ficarei muito tempo por aqui: não tenho emprego e é tudo muito caro. Devido a isto, deveri voltar para os lados do Sudão, da Abissínia ou da Arábia. Talvez vá até Zanzibar, de onde se podem fazer longas viagens a África, e talvez à China, ao Japão, quem sabe onde? (...)
Harar, 18 de Maio de 1889: (...) pois creio que devemos ter um ar excessivamente barroco após tão longa estadia em terras como estas. Harar, 10 de Novembro de 1890: Minha querida Mamã: Recebi a tua carta de 29 de Setembro de 1890. Ao falar de casamento quis eu dizer que entendia ficar livre para viajar, viver no estrangeiro ou mesmo continuar a viver em África. Estou de tal modo desabituado do clima da Europa que dificilmente voltaria para aí. Provavelmente, ser-me-á até necessário passar dois invernos fora, isto admitindo que um dia possa voltar a França. E depois, como poderei refazer relações, que empregos poderei encontrar? - É ainda uma questão a pôr-se. Aliás, se há coisa que me é impossível é a vida sedentária. Seria necessário que eu encontrasse alguém que me seguisse nas minhas peregrinações. (...) Quanto a Harar, não há nenhum cônsul, nem nenhum posto, nem nenhuma estrada; chega-se aqui por camelo e vive-se exclusivamente entre negros. Mas enfim, é-se livre e o clima é bom. Tal é a situação. Adeus. Aden, 30 de Abril de 1891: Querida Mamã, (...). Vendo crescer constantemente o inchaço no meu joelho direito e a dor na articulação sem encontrar remédio nem conselho, pois em Harar estamos no meio dos negros e não há nenhum europeu, resolvi ir-me embora. (...) Contratei dezasseis carregadores negros, à razão de 15 talaris cada um, de Harar a Zeilah, mandei fabricar uma maca com uma cobertura de tela, e foi em cima dela que acabei de percorrer em 12 dias os 300 quilómetros de deserto que separam as montanhas de Harar do porto de Zeilah. É inútil dizer-vos os sofrimentos horríveis que suportei durante a viagem, sem nunca poder dar um passo fora da maca, o meu joelho inchava a olhos vistos e a dor aumentava constantemente. (...) Quanto a mim, ela foi certamente causada pelo cansaço das caminhadas a pé e a cavalo em Harar. (...) Hospital de la Conception, Marselha, quinta-feira, 21 de Maio de 1891: Minha querida Mamã, minha querida irmã: Após sofrimentos terríveis, não tendo podido tratar-me em Aden, apanhei o barco da Transportadora para regressar a França. Cheguei ontem, depois de treze dias cheio de dores. Sentindo-me demasiado fraco à chegada e transido de frio, tive de dar entrada aqui no Hospital de la Conception, onde pago 10 francos por dia, com remédio incluído. (...) Telegrama de Rimbaud à Mãe: Marselha, 22 de Maio de 1891. Expedido às 2h50: Hoje, tu ou a Isabelle, venham a Marselha por comboio expresso. Segunda de manhã amputam-me a perna. Perigo de morte. Tratar de assuntos importantes. Arthur. Hospital Conception. Respondam.

outubro 01, 2009

Rimbaud: Partir (3)

«O "estilo" da correspondência (de Rimbaud) caracteriza-se por não se caracterizar. Rimbaud não se dirige a companheiros de letras mas à família, a colegas de negócios, a jerarcas locais. Escreve ao correr da pena e da pressa, nos intervalos de partidas e chegadas. Procura, no entanto, entre desabafos da psique e relatos dos padecimentos físicos, fornecer apontamentos geográficos, climatéricos, antropológicos - o quanto basta para o enquadramento, junto dos destinatários, das situações em que se encontra. Ausente o "poeta" (de notar que em toda a correspondência não há a mínima alusão ao passado literário ou amoroso), é o homem de acção, com o seus projectos, sucessos poucos e desaires muitos, que ressalta. Instável, irascível, desamparado. Afinal, como O OUTRO!».
(texto de Vitor Silva Tavares in Cartas da Abissínia de Arthur Rimbaud seguido de Mar Vermelho de Philippe Soulpault; Trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares; Edições & etc; Lisboa 2000)
Cartas
Harar, 13 de Dezembro de 1880: Cheguei a este país depois de vinte dias a cavalo através do deserto somali. Harar é uma cidade colonizada pelos egípcios e dependente do governo deles. A guarnição é de vários milhares de homens. A nossa agência e os nossos armazéns estão aqui instalados. Os produtos comerciáveis são o café, o marfim, as peles, etc. O país é alto mas não árido. O clima fresco e não doentio. Todas as mercadorias são importadas da Europa e transportadas por camelos. Aliás, há muito a fazer nesta terra. Não temos aqui correio regular. Somos obrigados a enviar a correspondência para Aden, e só de tempos a tempos. Por conseguinte, só recebereis esta carta daqui a muito tempo. (...)
Harar, 25 de Maio de 1881: (...) Ai de mim! Não tenho apego nenhum à vida, e se vivo, é porque estou habituado a viver de fadigas; mas se for forçado a continuar a fatigar-me como até agora e a alimentar-me de mágoas tão veementes como absurdas nestes climas atrozes, temo abreviar a minha existência (...).
Harar, 6 de Maio de 1883: (...) A vida é assim, e a solidão é uma coisa má nestas paragens. Pelo que me diz respeito, lamento não ter casado e não ter família própria. Mas agora estou condenado à errância, ligado a uma empresa longínqua, e todos os dias perco o gosto pelo clima e pelas maneiras de viver, e mesmo pela língua da Europa. Helás! para que servem estas idas e vindas, estas fadigas e aventuras junto de raças estrangeiras, e estas línguas como que se atafulha a memória, e estes sofrimentos inomináveis, se um dia, após vários anos, não puder repousar num lugar que me agrade mais ou menos e ter uma família, a ter pelo menos um filho a quem passe o resto da vida a educar segundo as minhas ideias, a ilustrar e a dotar com a instrução mais completa que se pode adquirir nesta época, e que eu veja tornar-se num engenheiro de renome, um homem poderoso e rico através da ciência? Mas quem sabe quanto poderão durar os meus dias aqui nestas montanhas? E posso desaparecer no meio destas tribos, sem que a notícia alguma vez seja divulgada (...) Aden, 5 de Maio de 1884: (...) Perdoem-me que vos conte em pormenor as minhas preocupações. É que vejo que estou a chegar aos trintas anos (metade da vida!) e que me cansei muito a correr mundo, sem resultado (...)
Aden, 10 de Setembro de 1884: (...) Sinto porém que estou a envelhecer muito depressa (...)
Aden, 18 de Novembro de 1885: Estou feliz por deixar este horrível buraco de Aden onde tanto sofri. Também é verdade que vou fazer uma viagem terrível: daqui a Choa (quer dizer, de Tadjura a Choa) são uns cinquenta dias de jornada a cavalo por desertos escaldantes. Mas na Abissínia o clima é delicioso, não faz calor nem frio, a população é cristã e hospitaleira, leva-se uma vida fácil, é um lugar de repouso muito agradável para os que embruteceram durante alguns anos nas margens incandescentes do Mar Vermelho (...)
Tadjura, 28 de Fevereiro de 1886: (...) Dentro de um mês, ou seis semanas, o verão vai recomeçar nesta costa maldita. Espero não passar por cá muito tempo e, daqui a alguns meses, refugiar-me nos montes da Abissínia, que é a Suiça africana, sem invernos e sem verões; primavera e verdura perpétua, e a existência gratuita e livre! (...)