As Ilhas como Metáfora: A Ilha Interior
A Ilha Interior «O indivíduo é, também ele, uma ilha. Um perímetro paradoxal de carne e de pensamentos que se inscreve no mundo permanecendo-lhe alheio. Seja corpo ou espírito, o ser insular está, por definição, separado do continente dos outros: «Agora, fecharei os olhos, taparei as minha orelhas, renunciarei a todos os meus sentidos, apagarei inclusivamente do meu pensamento todas as imagens das coisas corpóreas ou, pelo menos, porque é difícil consegui-lo, considerá-las-ei vãs e falsas», declara Descartes, que apreende, no seu início, a consciência como retirada do mundo, na solidão do seu «eu». Quando afirma «penso, logo existo», é nele próprio e não em qualquer outro lugar que o filósofo encontra as garantias da sua existência. O mundo exterior é, também, atingido pela incerteza por essa «inspecção do espírito»; o outro torna-se, então, uma coisa exterior a mim, a quem não tenho acesso senão através da a analogia comigo mesmo, o que não faz dele um outro, mas (no melhor dos casos) um alter ego. É, paradoxalmente, dessa forma que se pode compreender o «isolamento» sádico que permite a Deprun, em Justine ou os Infortúnios da Virtude, distinguir entre o seu gozo (que lhe diz respeito) e a dor alheia (que não lhe diz respeito), e afirmar que, em bom rigor, não é nada de grave fazer sofrer outrem se o seu sofrimento oferecer prazer ao torcionário. Antes, Leibniz herdara, também ele, a insularidade cartesiana ao descrever as «mónadas» (que constituem toda a realidade) como não tendo «quaisquer janelas através das quais algo possa entrar ou sair». Para Leibniz um indivíduo nunca comunica com outro, limita-se a desenvolver um programa interno dado por Deus, cuja bondade divina assegura um desdobramento homogéneo no sentido da totalidade. Do mesmo modo que todo o objecto é constituído por átomos, o mundo é um arquipélago de indivíduos que, pela graça de Deus, se compreendem sem se falarem verdadeiramente. A partir daí basta retirar à arquitectura do universo leibniziano o seu fecho de abóbada para o transformar, como faz Michel Houellebecq, num espaço neutro onde se cruzam indivíduos desamparados, «partículas elementares», que apartam para sempre o sentimento crescente da sua solidão. Mas, fora de Deus, o ser insular pode, também, tornar-se simplesmente senhor se si próprio sem dominar o universo, à maneira do «anarca» de Junger. Rebelde subtil face à ordem social, individualista espectacular e único membro do seu partido, o anarca não suprime a autoridade, mas ignora-a, e aprecia, sorridente, a ilha onde habita a sua alma, a fúria dos homens-massa». (texto de Raphael Enthoven; Lire; Junho 2004; Trad. de João Carlos Barradas)
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