dezembro 26, 2007

Tempo di Viaggio: Nostalghia (1)

Uma viagem é possível. Para outra mais assombrada, efeito de uma busca interior ou de uma qualquer nostalgia. Em 1979 Andrej Tarkovszkij está em Itália na companhia do poeta e argumentista italiano Tonino Guerra. Ambos vão, por um mês, iniciar um Tempo di Viaggio, uma jornada, física e espiritual, à descoberta de um local, também ele real e mental, marcado no espírito de Tarkovszkij para as filmagens de Nostalghia. Guerra, o anfitrião, conduz o realizador russo através das belezas tradicionais e turísticas da Itália, de Nápoles em direcção a sul, por Sorrento e Lecce. Mas Tarkovszkij procura um lugar secreto, já visualizado, objecto de uma escolha que só ele sabe qual é, mesmo antes de lhe dar forma. A sua tensão interior libertou-se da realidade para se transformar numa relação emocional e contemplativa com essa realidade. Andrej sabe que tudo se encaixará de uma forma subtil e única num só local e num estado de alma. Durante este tempo de viagem as estradas de Itália e as vilas, as árvores e as piazzas alternam com as imagens de casas, varandas e jardins traseiros onde Tonino e Andrej reflectem sobre os fundamentos do artista e como ele - refere o russo - se deve sacrificar pela sua arte; para que o que fizer contenha as belezas, acrescenta Tonino Guerra.

No fim, Andrej encontra realmente o que procura. A sua busca de Nostalghia, ou, na verdade, a sua busca de uma nostalgia, de uma unidade interior e de um sentido, termina nas paisagens da Itália central, nas vilas medievais das regiões de Siena e Arezzo, na Toscana, e em dois momentos/locais determinantes e figurativos: com o fresco da Madonna del Parto, de Piero della Francesca, em Monterchi, e nas termas de Bagno Vignoni. O resultado desta etapa à procura de uma outra, desta investigação proposta por Tarkovszkij, foi concretizado em Tempo di Viaggio, o documentário, de cerca de 66 minutos, escrito e realizado por Andrej e Tonino para a TV italiana. A lenta progressão dos lugares e imagens desta viagem é já o prenúncio do que estava a acontecer no espírito de Andrej Tarkovszkij e que ele materializará, interiramente, em 1983, com Nostalghia. De facto a sucessão artística e poética das representações de Tempo di Viaggio, em vez de apresentarem um facto concreto ou possibilitarem conclusões, postulam a caminhada de um personagem dentro e à volta de si mesmo, a lidar com as suas interrogações. Não há acção, nem factos, nem desenvolvimento do enredo; há apenas simplicidade - tal como - e é Andrej que a certo passo o afirma - nos filmes de Antonioni, na música de Bach, em Leonardo e nos livros de Tolstoy. É a iniciação de um processo de transformação em que alguém se torna cativo de um ambiente e nele encontra o propósito da sua pesquisa.

A busca cumpre-se na contemplação do rosto da Madonna del Parto, que a Andrej lhe lembra o da sua mulher, e na bruma que de manhã cobre a piscina de Santa Caterina da Siena, nas termas de Vignoni, onde os aldeões se banham para reclamar a juventude. Tarkovskzkij usará efectivamente estas imagens e ideias, mais tarde, no seu filme definitivo. Nele, como aqui em Tempo di Viaggio, também não há um enredo, nem acontecimentos, apenas imagens e fragmentos de um mundo interior, psicológico. Em Nostalghia, Gortchakov, a figura central (um espelho do próprio Andrej), é um poeta que parte para a Toscana com o intuito de reunir material para escrever o libreto de uma ópera sobre o compositor russo do século XVIII Maksim SazontoviC Berezovskij, que viveu em Itália, onde obteve fama e reconhecimento, mas cuja inexorável nostalgia pela sua Rússia natal o levou a voltar, onde pouco tempo depois se suicidou. Gortchakov, acompanhado pela sua tradutora Eugenia (Domiziana Giordano), percorre as colinas da Toscana para ver a Madonna, porque o seu rosto (tal como a Tarkovszkij) lhe lembra o da sua mulher na Rússia. Sózinho, enquanto Eugenia se aventura pelas redondezas, Gortchakov enceta, como Maksim Berezovskij, uma peregrinação interior, uma nostalgia (como também foi a de Andrej Tarkovszkij no seu exílio), perfeitamente ilustrada no filme pelo contraste entre a paisagem monocromática da Rússia e a idílica Itália rural, que só vai encontrar paz, alívio e sentido nas águas cálidas de Bagno Vignani. Nostalghia é certamente (a par de Zerkalo, de 1975) o filme de Tarkovszkij com maior expressão poética, uma projecção exacta da sua alma, das suas nostalgias, uma das obras mais melancólicas, contemplativas e simbólicamente obscuras do cinema: «o retrato de alguém em profundo estado de alienação em relação a si próprio e ao mundo, incapaz de encontrar um equilíbrio entre a realidade e a harmonia pela qual anseia, num estado de nostalgia provocado não apenas pelo distanciamento em que se encontra do seu país, mas também por uma ânsia geral pela totalidade da existência» (Tarkovszkij, Andrej. Sculpting in Time; Esculpir o Tempo. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998). Afinal a descoberta de uma realidade abstracta e de um sentido último que fora, como vimos, iniciado na mente de Andrej (e também de Gortchakov, e porventura de Berezovskij), em Tempo di Viaggio. Tempo de Viagem é pois o exemplo de como um começo pode servir outro começo, de como uma viagem, seja ela qual for e como for, se pode - e deve - empreender para nos conduzir a uma outra mais fundamental e perene: seja a do significado da vida e da constatação do efeito que a realidade exerce sobre nós, seja apenas aquela que cada um procura num certo momento, a propósito de um lugar, de uma paisagem ou de uma visão, de uma lembrança ou descoberta, por um fresco de Piero della Francesca ou por uma peça de Bach. Afinal o caminho de uma Nostalghia contida noutra nostalgia, que por sua vez se encontra noutra, e noutra, e em cada um de nós, fragmento atrás de fragmento. Como o é, neste tempo de viagem, a imensa nostalgia russa - como são sempre todas as nostalgias russas - em que Tarkovszkij conversa acerca da sua casa distante numa aldeia do seu país natal, sobre os campos cultivados e os tapetes de flores, e Guerra recita um poema seu no dialecto romagnolo. É o Tempo di Viaggio, de cada viagem e de cada Nostalghia desse tempo e dessa viagem. Fragmento sobre fragmento, na procura do irrecuperável.

«Um cesto cheio de fruta é a obra acabada. É certo. Enquanto um passeio na floresta será sempre uma questão pessoal sobre passeios e ar fresco.» (Andrej Tarkovszkij)

dezembro 17, 2007

Moleskine (6)

Não deixaremos de explorar,
e o fim da nossa exploração
será chegar onde começámos
e conhecer o local pela primeira vez ...
quando as labaredas se dobram
sobre a coroa das chamas
e a chama e a rosa são uma só.
T.S.Eliot, Four Quartets

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dezembro 04, 2007

O Calendário Cósmico: a Viagem Total

Carl Sagan, no episódio nº 2 de Cosmos, apresenta uma metáfora extraordinária para tentarmos compreender a história do universo, do mundo e dos homens: o calendário cósmico.
O calendário cósmico consiste em imaginar os 15 000 milhões de anos de vida do universo (ou pelo menos a forma que este assumiu desde o Big Bang) comprimidos e reduzidos a um ano civil, a 365 dias de um ano de vida na Terra.
Assim, cada 1000 milhões de anos de história do nosso planeta corresponderiam a cerca de 24 dias do nosso ano cósmico e 1 segundo desse ano a 475 rotações reais da Terra em torno do Sol.
A esta escala os acontecimentos referidos nos nossos livros de história estão de tal modo comprimidos que se torna necessário fazer uma contagem segundo a segundo dos últimos segundos do ano.
No calendário cósmico o primeiro segundo do dia 1 de Janeiro corresponde ao Big Bang, ao nascimento do universo. A história humana representa um ponto luminoso no dia 31 de Dezembro. A partir daqui, veja-se, experimente-se o assombro da vastidão cósmica:
Assim:
A origem da via láctea dá-se apenas no dia 1 de Maio e o sistema solar forma-se a 9 de Setembro. A Terra nasce a 14 de Setembro. A origem da vida na Terra aparece a 25 de Setembro. As primeiras células com núcleo em 15 de Novembro.
Mas é apenas em Dezembro que surgem os acontecimentos com os quais estamos mais familiarizados, cientifíca e históricamente.
No sábado, dia 21 de Dezembro os animais começam a colonização da Terra. Na quarta-feira seguinte, dia 24, véspera de Natal, aparecem os primeiros dinossauros. No dia 26 surgem os primeiros mamíferos. E os primeiros seres humanos apenas surgem na imensa e inexplicável vastidão cósmica no dia 31 de Dezembro, véspera de ano novo, pelas 22h30.
No calendário cósmico a história do universo é do tamanho de um campo de futebol e a história conhecida da humanidade do tamanho de uma mão.
No fim, toda a história registada, tudo aquilo de que temos conhecimento pelos livros, crónicas, testemunhos e provas que nos chegaram, ocupa apenas os últimos 10 segundos do dia 31 de Dezembro, sendo que o aparecimento do método experimental da ciência corresponde às 23h59´59´.
Neste momento, neste preciso instante presente, ocupamos o primeiro segundo do dia de ano novo. O que acontecerá a seguir ninguem saberá ...
Espantoso: este é o calendário cósmico de Carl Sagan. Veja-se o video. 5 minutos reais para a eternidade.

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