Moleskine (4)
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«Convenci-me há muito da virtude que é não nos consumirmos na vida das nossas emoções. Há sempre trabalho bastante para nos entreter, não falando já no vasto mundo lá fora. Em última análise, há sempre esta cidade. Enquanto ela existir, não creio que eu, ou seja quem for, possa deixar-se hipnotizar ou ofuscar por tragédias românticas. Lembro-me de um dia - o dia em que me preparava para partir, ao fim de um mês aqui passado sozinho. Acabava de almoçar numa pequena trattoria, no extremo mais distante das Fondamente Nuove, peixe grelhado e meia garrrafa de vinho. Com essa refeição no papo, dirigi-me para o sítio onde ficara alojado, para ir buscar as malas e apanhar um vaporetto. Caminhei um quarto de milha ao longo dos Fondamente Nuove, um pequeno ponto móvel nessa gigantesca aquarela, e depois virei à direita, no hospital de Giovanni e Paolo. Estava um dia quente, soalheiro, o céu azul, um perfeito encanto. E, de costas para as Fondamente e para San Michele, rente ao muro do hospital, quase a aflorá-lo com o ombro esquerdo e dando a cara ao sol, de olhos semicerrados, sento de repente: sou um gato. Um gato que ainda agora comeu peixe. Se algúem me tivesse dirigido a palavra nesse instante, eu teria respondido com um miado. Foi uma felicidade animal, absoluta» (Watermark. Marca de Água; Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993).
«A atmosfera da cidade, aquele odor levemente choco de charco e mar, que com tanta urgência o impelira de fugir, inspirava-o agora em fôlegos profundos, enternecidos, dolorosos. Seria possível que tivesse ignorado, que tivesse descurado quanto o seu coração estava apegado a tudo aquilo? O que de manhã fora meio lamento, vaga dúvida quanto à justeza da sua atitude, transformava-se agora em pesar, em verdadeiro sofrimento, em angústia tão amarga, que várias vezes lhe fez aflorar as lágrimas aos olhos e que nunca teria imaginado possível. O que mais lhe custava e que, por momentos, lhe parecia mesmo insuportável era manifestamente a ideia de que não voltaria a ver Veneza, de que aquilo era um adeus para sempre» (Der Tod in Venedig. Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978).
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Não vou fazer qualquer abordagem específica a Der Tod in Venedig nem ao filme de Visconti porque não é o lugar, nem tão pouco me considero habilitado. E todos sabemos de antemão qual é a história e do que se trata. E do que se trata é da busca da beleza, do belo, seja qual for e como nos apareça. Mesmo que Mann a entenda numa perspectiva mais platónica, como uma forma, como algo em em si e por si, e que devemos procurar abertos a todas as possibilidades («Pois a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é - nota bem! - a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos (...) e por isso ela é também caminho do artista para o espírito»; citamos Der Tod in Venedig; Morte em Veneza. Trad. de Sara Seruya. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1978). Ou Brodsky considere, ainda em Watermark, que «a beleza não pode ser tomada como um alvo, que ela é sempre um subproduto de outras demandas, muitas vezes banalíssimas». Seja como for, em Veneza, no Inverno, «os leões alumiam os nossos crepúsculos» (Watermark) e na Primavera, e com o início da época balnear, «sob um céu pálido e toldado, quando mar jaz, parado e mortiço (...), limitado ao largo por um horizonte insípido que parecia próximo e tão recuado da praia que deixava a descoberto faixas sucessivas de longos bancos de areia», julgamos «cheirar no ar o odor fétido da laguna» (Der Tod in Venedig; Morte em Veneza, continuamos com a tradução de Sara Seruya para a edição da Europa-América).
Aqui, no livro de Mann deixámos definitivamente o Inverno para sentir os avanços da estiagem. E o perigo, a vaga impressão na atmosfera e nas ruas e canalli de uma cidade tolhida por um calor espesso e pelo sciroco angustia tremendamente Gustav Von Aschenbach, que nisso pressente uma ameaça, um fim próximo, «uma desfiguração estranha do mundo». O mal, a doença subreptícia, que tínhamos entrevisto em Don`t Look Now, de Roeg (mas no Inverno), adensa-se lentamente e de outra forma à medida que Von Aschenbach prolonga a sua estadia em Veneza e acentua o êxtase pelo jovem aristocrata polaco Tadzio, a personificação do belo. No filme de Visconti, o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler faz pender a balança ainda mais para o lado da incerteza, do torpor e de uma mágoa e fôlego insuportáveis.
Von Aschenbach, que no livro de Thomas Mann é um escritor, é na obra de Luchino Visconti um músico - há aqui uma aparente e parcial contradição, pois parece que Mann se inspirou para escrever o seu livro quando viu o compositor Gustav Mahler, caído em lágrimas (seria da perfeição, da distribuição da luz?), na estação de Santa Lucia, a deixar Veneza; fez, contudo, que o protagonista da história fosse músico, mas deu-lhe o nome de Gustav, como primeiro nome; Visconti pegou no nome de Mann mas fez de Aschenbach músico, esse criador da mais incorpórea das artes, e rematou a sua obra com a música imortal do verdadeiro Gustav, o Mahler -, um músico que no seu quinquagésimo aniversário deixa Munique, por uma súbita sensação de «vertigem de fuga e(...) avidez de libertação», e parte para o Sul, para Veneza, onde decide abordar a cidade da única maneira que ela deve ser abordada, a única que faz sentido, a mais perfeita: por barco, em mar alto. É aqui que entroncamos na tal longa sequência inicial, do filme de Visconti, com o Sr. Bogarde, na cadeira de repouso, de que Brodsky fala. A música acentua o carácter melancólico da navegação do vaporetto, com Von Aschenbach, de olhar parado, sofrido, doentio, a ver a aproximação de San Marco. É um momento único em todos os sentidos. Um momento magistral do cinema, que o livro de Mann também prodigiosamente insinua, faz ver, pelo suporte da literatura.
Gustav Von Aschenbach, uma vez no cais de San Marco, pedirá a um gondolieri que o leve, mais a bagagem, à ilha do Lido. Mas logo ali, antes de embarcar, «tudo aquilo lhe aparecia como prenúncio de algo de invulgar, dir-se-ia que começava a envolvê-lo um alheamento próximo do sonho» (continuamos a citar Morte em Veneza, da Europa-América), como se Veneza já estivesse contaminada por algo imperceptível, que pouco a pouco, durante a temporada estival de Aschebach no Hotel des Bains, no Lido, se iria instaurar e pegar-se, tal uma ferida, com os cheiros da laguna e o sciroco, numa mistura real e impossível de dor e beleza, beleza e morte, agonia e superioridade, caminhos para o espírito, deslocações dos sentidos e visões banais. E nós sabemos, como sabiam Brodsky, Mann, Visconti, Mahler e Von Aschenbach, que tudo isso anda ligado. No Inverno e na Primavera. É preciso é olhar de novo.
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Don`t Look Now é também o título de um filme, baseado numa short story de Daphne du Maurier, realizado em 1973 por Nicolas Roeg (co-produção do Reino Unido e da Itália), protagonizado por Julie Christie e Donald Sutherland (entre nós conhecido como Aquele Inverno em Veneza). Nele, Julie Christie e Donald Sutherland são, respectivamente, Laura e John Baxter, um casal inglês que viaja para Veneza, no Inverno, na tentativa de salvar o casamento, após a morte trágica da filha. Entretanto, enquanto John trabalha na restauração de uma igreja, Laura conhece duas estranhas irmãs, uma das quais afirma que a filha de ambos tem tentado entrar em contacto com eles através dos seus poderes mediúnicos. John, então, julga ver a sua filha a percorrer as ruas estreitas da cidade quando se depara inadvertidamente, por razões que desconhece, com um vulto vermelho a fugir-lhe. Depois, à medida que a história avança, somos levados numa terrível viagem ao subconsciente, por uma Veneza vazia, gélida, febril e perturbante. Todo o filme é atravessado por uma sensação de mau estar crescente, um desconforto psíquico, uma angustiante mistura de sons de vidros partidos e gritos estritendes com movimentos bruscos de câmara pelos locais obscuros de uma cidade de águas pardas, salas vazias, hotéis fechados ou desmantelados e campi subitamente desertos. Uma sensação de perigo eminente adensa-se; um mal instala-se, hipnótico (e é até físicamente que o sentimos), como se fôssemos proibidos de olhar: Don`t Look Now .
O enredo desintegra-se, parece conduzir-nos numa espécie de ensaio através do que não sabemos explicar e que não está à frente dos nossos olhos. As cenas do acidente de Sutherland no andaime da igreja e do cortejo fúnebre com Julie Christie e as duas irmãs através do Grande Canal, são indicadoras de um desastre próximo, que nos incomoda e nos está sempre a incomodar, mesmo que não o percebamos, logo desde o princípio do filme, com o inesperado afogamento da filha dos Baxter. O ending da história é ainda, mais de três décadas depois, um dos mais enigmáticos e arrepiantes de sempre.
E em pano de fundo, Veneza aparece deslocada no tempo, suspensa no Inverno, sobrenatural. Mas é também uma cidade bela, como só no Inverno o pode ser, quando as vozes e os passos desaparecem gradualmente pelos canali para se misturarem na nebia que se encosta, como em Watermark, aos poços e fachadas de mármore e tijolo dos campi. Contudo, é patente um mal constante e físico que se impõe, o que só a espaços, e esforçadamente, antevemos no livro de Brodsky, ao passo que há um lado nocturno, pesado e assustador no filme de Roeg (e na story de Daphne du Maurier), como se Veneza, presa a uma série de acontecimentos e motivos, evocações e elipses, visíveis e invisíveis, pressagiasse, dentro de si, algo de invulgar e de terrífico; como se estivesse doente, e isso, de permeio com a sua beleza eminente, nos fizesse olhá-la de outra forma, suspender o olhar, não olhar, desviar os olhos, e não olhar agora; Don´T Look Now, como em Tarkovszkyj.
O mesmo sucede numa outra obra, ou melhor, em duas outras obras-primas (Brodsky não concordaria) do século XX, uma da literatura, outra do cinema: Death in Venice, escrita em 1912 por Thomas Mann, adaptada ao cinema, com o mesmo nome, em 1971, por Luchino Visconti (com Dirk Bogarde, irrepreensível, a fazer de Gustav von Aschenbach e o imortal Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler, afinal a terceira obra-prima, como se literatura, cinema e música se fundissem num único momento magistral). Também aqui há algo moribundo e que impesta as águas paradas da laguna. Com uma leve diferença, todavia: em Brodsky e Don`t Look Now estamos no Inverno, acostados aos reflexos nos pallazzi e aos vultos fugazes, ameaçadores; em Death in Venice, de Mann e Visconti, o que assola Veneza é-nos dado através da lenta evocação da época balnear passada no Lido, quando o scirocco invade o Adriático. Mas isso são outras belezas ou outra busca da beleza, ou outros olhares, ou não olhares.
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É ainda guiados pelo Watermark, de 1992 (Marca de Água. Trad. de Ana Luísa Faria. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993), que seguimos através das fachadas, do mármore e do tijolo recônditos, das janelas góticas ou mouriscas, dos nichos tornados mais fundos, dos canali interiores, quase presos numa noite assustadora, dos querubins e dos anjos nas paredes, das estátuas em Campo dei Mori, dos reflexos na água espessa, castanha, que inunda as escadarias baixas dos palazzi, numa «imagem a preto e branco, como convém ao que brota da literatura, ou do Inverno; aristocrática, escura, fria, mal iluminada, com acordes de Vivaldi e Cherubini por pano de fundo, e por nuvens de corpos femininos drapejados à maneira de Bellini/Tiepolo/Ticiano». De manhã, a luz assenta numa espécie de vibração conjunta de todos os sinos que tocam para lá do céu que não se vê, porque, por momentos, Veneza desaparece, visualmente, para ser substituída pelo eco dos campanários que cruzam San Marco e o Campo de San Polo, como se vibrasse «um gigantesco serviço de chá de porcelana, sobre uma bandeja de prata». E ao fim da tarde «segreda-nos a luz de Inverno, detida no seu curso pela parede de tijolo de um hospital ou chegando ao destino, o paraíso do frontone de San Zaccaria, depois da sua longa travessia através do cosmos».
«(...) Esta é a luz de Inverno no auge da sua pureza. (...) A única ambição das suas partículas é alcançar um objecto e, grande ou pequeno, torná-lo visível. É uma luz íntima, a luz de Giorgione ou Bellini, e não a de Tiepolo ou Tintoretto. E a cidade demora-se nela, saboreando o seu afago, a carícia do infinito de onde veio a luz.» No Inverno, Veneza acalmava por momentos os nervos de Joseph Brodsky, do mesmo modo que a luz (a sua luz) e o nevoeiro absorviam o perfil das colunatas e dos pátios. Num recanto determinado do Cannaregio, onde também andou Corto Maltese, o panorama que a partir da Ponte de la Saca se avista para a parte norte da laguna levou-o a afirmar estarmos aí diante da mais perfeita aguarela do mundo. A ilha cemitério de San Michele fica mesmo em frente, no quadrante Este. Ocupa praticamente todo o quadro. Para quem, como muitos, desejava morrer em Veneza, não de causas naturais, mas por vontade, num quarto de um palazzo, virado ao Grande Canal, e escrever, antes de comprar um Browning, algumas «elegias apagando cigarros nas lajes húmidas do chão» até se percebe. Mas Brodsky não veio a morrer em Veneza, mas em Nova York, com 56 anos, de ataque de coração, em 28 de Janeiro. Todavia, e como quis, encontra-se sepultado em San Michele, no distrito dos mortos da cidade que amou, atrás dos muros de tijolo que sempre o impressionaram, a pouca distância de outro distrito veneziano, o Cannaregio, ali entre esses secretos locais de Veneza, esses que se tornam mais belos quando chega o Inverno, num «tempo para nos esquecermos de nós próprios».
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