Uma viagem é possível. Para outra mais assombrada, efeito de uma busca interior ou de uma qualquer
nostalgia. Em 1979
Andrej Tarkovszkij está em Itália na companhia do poeta e argumentista italiano
Tonino Guerra. Ambos vão, por um mês, iniciar um
Tempo di Viaggio, uma jornada, física e espiritual, à descoberta de um local, também ele real e mental, marcado no espírito de Tarkovszkij para as filmagens de
Nostalghia. Guerra, o anfitrião, conduz o realizador russo através das belezas tradicionais e turísticas da Itália, de Nápoles em direcção a sul, por Sorrento e Lecce. Mas Tarkovszkij procura um lugar secreto, já
visualizado, objecto de uma escolha que só ele sabe qual é, mesmo antes de lhe dar
forma. A sua
tensão interior libertou-se da realidade para se transformar numa relação emocional e contemplativa com essa realidade. Andrej sabe que tudo se encaixará de uma forma subtil e única num só local e num
estado de alma. Durante este
tempo de viagem as estradas de Itália e as vilas, as árvores e as
piazzas alternam com as imagens de casas, varandas e jardins traseiros onde Tonino e Andrej reflectem sobre os fundamentos do artista e como ele - refere o russo - se
deve sacrificar pela sua arte; para que o que fizer contenha as belezas, acrescenta
Tonino Guerra. No fim, Andrej encontra realmente o que procura. A sua busca de
Nostalghia, ou, na verdade, a sua busca de
uma nostalgia, de uma unidade interior e de um sentido, termina nas paisagens da Itália central, nas vilas medievais das regiões de Siena e Arezzo, na
Toscana, e em dois momentos/locais determinantes e figurativos: com o
fresco da
Madonna del Parto, de Piero della Francesca, em Monterchi, e nas termas de
Bagno Vignoni. O resultado desta etapa à procura de uma outra,
desta
investigação proposta por Tarkovszkij, foi concretizado em
Tempo di Viaggio, o documentário, de cerca de 66 minutos, escrito e realizado por Andrej e Tonino para a TV italiana. A lenta progressão dos lugares e imagens desta
viagem é já o prenúncio do que estava a acontecer no espírito de
Andrej Tarkovszkij e que ele materializará, interiramente, em 1983, com
Nostalghia. De facto a sucessão artística e poética das representações de
Tempo di Viaggio, em vez de apresentarem um facto concreto ou possibilitarem conclusões, postulam a caminhada de um personagem dentro e à volta de si mesmo, a lidar com as suas interrogações. Não há acção, nem factos, nem desenvolvimento do enredo; há apenas simplicidade - tal como - e é Andrej que a certo passo o afirma - nos filmes de Antonioni, na música de Bach, em Leonardo e nos livros de Tolstoy. É a iniciação de um processo de transformação em que alguém se torna cativo de um ambiente e nele encontra o propósito da sua pesquisa. A busca cumpre-se na contemplação do rosto da
Madonna del Parto, que a Andrej lhe lembra o da sua mulher, e na bruma que de manhã cobre a piscina de
Santa Caterina da Siena, nas termas de
Vignoni, onde os aldeões se banham para reclamar
a juventude. Tarkovskzkij usará efectivamente estas imagens e ideias, mais tarde, no seu filme definitivo. Nele, como aqui em
Tempo di Viaggio, também não há um enredo, nem acontecimentos, apenas imagens e fragmentos de um mundo interior, psicológico. Em
Nostalghia, Gortchakov, a figura central (um
espelho do próprio Andrej), é um poeta que parte para a
Toscana com o intuito de reunir material para escrever o libreto de uma ópera sobre o compositor russo do século XVIII Maksim SazontoviC Berezovskij, que viveu em Itália, onde obteve fama e reconhecimento, mas cuja inexorável
nostalgia pela sua Rússia natal o levou a voltar, onde pouco tempo depois se suicidou. Gortchakov, acompanhado pela sua tradutora Eugenia (Domiziana Giordano), percorre as colinas da
Toscana para ver a
Madonna, porque o seu rosto (tal como a Tarkovszkij) lhe lembra o da sua mulher na Rússia. Sózinho, enquanto Eugenia se aventura pelas redondezas, Gortchakov enceta, como Maksim Berezovskij, uma peregrinação interior, uma
nostalgia (como também foi a de
Andrej Tarkovszkij no seu exílio), perfeitamente ilustrada no filme pelo contraste entre a paisagem monocromática da Rússia e a idílica Itália rural, que só vai encontrar paz, alívio e sentido nas águas cálidas de
Bagno Vignani. Nostalghia é certamente (a par de
Zerkalo, de 1975) o filme de Tarkovszkij com maior expressão poética, uma projecção exacta da sua alma, das suas
nostalgias, uma das obras mais melancólicas, contemplativas e simbólicamente obscuras do cinema: «o
retrato de alguém em profundo estado de alienação em relação a si próprio e ao mundo, incapaz de encontrar um equilíbrio entre a realidade e a harmonia pela qual anseia, num estado de nostalgia provocado não apenas pelo distanciamento em que se encontra do seu país, mas também por uma ânsia geral pela totalidade da existência» (Tarkovszkij, Andrej.
Sculpting in Time; Esculpir o Tempo. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998
). Afinal a descoberta de uma realidade abstracta e de um sentido último que fora, como vimos, iniciado na mente de Andrej (e também de Gortchakov, e porventura de Berezovskij), em
Tempo di Viaggio.
Tempo de Viagem é pois o exemplo de como um começo pode servir outro começo, de como uma
viagem, seja ela qual for e como for, se pode - e deve - empreender para nos conduzir a uma outra mais fundamental e perene: seja a do significado da vida e da constatação do efeito que a realidade exerce sobre nós, seja
apenas aquela que cada um procura num certo momento, a propósito de um lugar, de uma paisagem ou de uma visão, de uma lembrança ou descoberta, por um
fresco de Piero della Francesca ou por uma peça de Bach. Afinal o caminho de uma
Nostalghia contida noutra
nostalgia, que por sua vez se encontra noutra, e noutra, e em cada um de nós, fragmento atrás de fragmento. Como o é,
neste tempo de viagem, a imensa
nostalgia russa - como são sempre todas as
nostalgias russas - em que Tarkovszkij conversa acerca da sua casa distante numa aldeia do seu país natal, sobre os campos cultivados e os tapetes de flores, e Guerra recita um poema seu no dialecto
romagnolo. É o
Tempo di Viaggio, de cada
viagem e de cada
Nostalghia desse tempo e dessa
viagem. Fragmento sobre fragmento, na procura do irrecuperável.