As Ilhas como Metáfora: A Ilha Mãe
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E enquanto as pequenas baleias azuis se passeiam ao largo, o fragmento da história de Marcel, no embalo do barco a costejar São Jorge, e da mulher luminosa que sorri para ele, debaixo do sol:
«Deve ser porque tenho pensado muito em ti, continuou, nestas ilhas, no sol. Agora falava quase sussurrando como se falasse para si própria. Não fiz senão imaginar-te, durante todo esse tempo, choveu sempre, via-te sentado numa praia, penso que foi demasiado longo. O homem pegou-lhe na mão. Também para mim, disse, mas nas paraias estive pouco, o que mais vi foi a máquina de escrever. E depois chove também aqui, a cântaros. A mulher sorriu.»
E depois:
«De qualquer modo escrevi outras coisas, prosseguiu ele, estas ilhas são de um tédio mortal, para passar o tempo não há outro remédio senão escrever. E além disso queria confrontar-me com uma dimensão diferente, passei toda a vida a escrever ficção. A mim parece-me mais nobre, disse a mulher, pelo menos é mais gratuita, e portanto, como dizer?, mais leve ... Oh sim, riu o homem, a delicadeza: par délicatesse j`ai perdu ma vie. Mas a certa altura é preciso ter a coragem de se medir com a realidade, pelo menos com a realidade da nossa vida. E depois, olha, a gente está sedenta de vida realmente vivida, está cansada da fantasia dos romancistas sem fantasia. A mulher perguntou baixinho: são memórias?».
E outros fragmentos: os que decidem partir e não voltar; a Horta; os acasos; as baleias adormecidas, a ilha absoluta do Pico; o regresso de uma caça; a história fantástica de Lucas Eduíno, em Porto Pim; os ventos sobre tudo o resto: Inutile Phare de la Nuit:
«Rupert tem o cabelo muito ruivo, sardas, uma cara patusca de Danny Kaye. Talvez me tenha dito que era escocês ou talvez eu o considere como tal devido à sua fisionomia. Em Londres trabalhava numa companhia de navegação: anos e anos sentado a uma mesa, com a luz eléctrica acesa, a sonhar os portos longínquos donde chegavam mercadorias exóticas. Assim, um dia pediu a liquidação, vendeu tudo o que tinha e comprou este barco. (...) Breezy foi com ele e agora vivem no barco. Seja benvindo a nossa casa, dizem rindo. Breezy tem um rosto franco muito cordial, um esplêndido sorriso e traz um vestido comprido às flores como se tivesse de enfrentar um garden-party e não uma travessia do Atlântico.»
«Para os navegantes que param na Horta é norma deixar no paredão do molhe um desenho, um nome, uma data. É um muro com uns cem metros de comprimento, onde se sobrepõem desenhos de barcos, cores de bandeiras, números, frases. Refiro uma entre muitas: Nat, de Brisbane. Vou para onde o vento me levar.»
«É esbelto, muito afuselado, foi construído com material de primeira qualidade. Deve ter navegado bastante. A este porto chegou por acaso. De resto as viagens são um acaso. Chama-se Nota Azul.»
«Imaginei que os dias de excessiva bonança e de sol intenso, quando sobre o oceano pesa um calor compacto, serão os raros momentos concedidos às baleias para regressar com a memória fisiológica à sua ancestralidade terrestre. É-lhes necessário uma concentração tão intensa e total que caem num sono profundo, como uma morte aparente: e assim flutuando, como brilhantes troncos cegos, conseguem recordar, como em sonho, um passado remotíssimo (...).»
«A ilha do Pico é um cone vulcânico que emerge de repente do oceano: não é mais do que uma alta montanha abrupta pousada sobre a água. Tem três aldeias: Madalena, São Roque e Lajes; o resto é rocha de lava, onde cresce de vez em quando um raquítico bacelo e alguns ananases silvestres.»
«Talvez porque ambos estão em extinção, digo-lhe por fim em voz baixa, vocês e as baleias, penso que foi por isso. Provavelmente adormeceu, não responde nada. Mas entre os dedos brilha a ponta do cigarro. A vela chia de forma lúgrube, os corpos imóveis no sono são pequenos montes escuros e a chalupa desliza sobre a água como um barco fantasma.»
«Querem a viola de arame que dá este som de feira melancólica, e eu canto-lhes modinhas pirosas onde a rima é sempre a mesma, mas tanto faz, eles não percebem e, como vês, bebem gin tónico. Mas tu, o que é que procuras, que todas as noites vens aqui? Tu és curioso e procuras outra coisa, porque é a segunda vez que me convidas a beber, mandas vir vinho «de cheiro» como se fossses dos nossos, és estranjeiro e finges falar como nós, mas bebes pouco e depois ficas calado e esperas que fale eu. Dissestes que és escritor e, no fundo, talvez a tua profissão tenha alguma coisa a ver com a minha.»
Inutile Phare de la Nuit: o destino em Porto Pim. Voltamos à história de Rupert e Breezy, que os ventos levaram à Horta e que agora os fazem partir de novo:
«Os copos batem mum brinde à viagem. Oxalá tenham bons ventos, é o que lhes desejo, agora e sempre. Rupert corre a portinha de uma estante e introduz uma bobina na aparelhagem estereofónica. É o Concerto K 271 para piano e orquestra de Mozart, e só neste momento compreendo porque o barco se chama Amadeus. (...) Penso que Rupert e Breezy atravessam os mares acompanhados pelos cravos e pelas melodias mozartianas e a coisa parece-me de uma estranha beleza, talvez porque sempre associei a música à ideia da terra firme, do teatro ou de uma sala com isolamento sonoro e na penumbra. A música adquire um tom solene e envolve-nos. Os copos estão vazios, levantamo-nos e abraçamo-nos. Rupert põe o motor a trabalhar, meto-me pela escadinha e num pulo estou no molhe. Cai uma luz macia sobre o aglomerado de casas de Porto Pim. O Amadeus dá uma volta e parte velozmente. Breezy vai ao leme e Rupert está a içar a vela. Fico a acenar com a mão até que o Amadeus, já com todas as velas pandas, alcança o largo.»
Inutile Phare de la Nuit ...
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Passagem: Açores; Espaço Tallassa
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Pajottenland, província de Vlaams-Brabant, Vlaanderen, Fev/Mar.2007 (Photos by RC)
Ainda e por último, as árvores. A Pajottenland, as árvores de Pieter Bruegel, l `Ancien, 500 anos depois, e os lugares da sua sequência de trabalhos intitulada De Maanden, aqui nos meses de Fevereiro e Março, como em De sondere tag (La journée sombre): Vollezele, Gooik, Leenik, Ninove, Gaasbeck, Oetingan, Enghien, St Pieters-Lieeuw.
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De nestenrover, (Huile sur bois,1568), Pieter Bruegel, l´Ancien
Pieter Bruegel, l `Ancien pintou De nestenrover (Le dénicheur), que traduziríamos para O camponês e o pilha ninhos, um ano antes da sua morte, em 1569. Em comparação com as suas representações mais antigas, esta obra dá a impressão de que poderia ter sido pintado por um outro artista. Na verdade, a paisagem montanhosa das suas primeiras imagens, porventura, como referímos, influenciadas pela sua viajem a Itália e aos Alpes, é agora substituída pelo imenso território plano dos campos, típico, aliás, da Vlaanderen (Flandres) e da Pajottenland, a vastidão do panorama cede perante a patente aproximação a determinados elementos da natureza e a tradicional enorme multiplicidade de figuras, como por exemplo sucede em Landschap met ijsschaatsen en de vogelknip (Paysage d ´hiver avec patineurs et trappe aux oiseaux) e De volkstelling te Betlehem (Le dénombrement de Bethléem), é drásticamente reduzida, mas, em contrafundo, apresentada de uma maneira monumental. A sua concepção da paisagem, que é, como temos visto, a marca relevante da sua obra, aparece, aqui, através da forma como, nomeadamente, a luz é captada através das árvores, formal e tecnicamente inovada. Efectivamente, com De nestenrover (Le dénicheur), Bruegel contribuíu decididamente para o desenvolvimento e a importância da pintura de paisagem.
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